Mas a cicatriz gorda dos franceses é a da escravidão. Eles dominaram com mãos de ferro até meados do século 20 Marrocos, Tunísia, Guiné, Camarões, Togo, Senegal, Madagascar, Benin, Níger, Burkina Faso, Costa do Marfim, Chade, República do Congo, Gabão, Mali, Mauritânia, Argélia, Comores, Djibouti e República Centro Africana. A França foi um grande exportador de escravos para o mundo e para suas colônias no Caribe, dentre elas o Haiti que até hoje sofre com a herança maldita do colonizador.
Liberdade, igualdade e fraternidade, velho lema da Revolução Francesa, só vale dentro de casa e não é para todos. Basta caminhar pelos bairros da periferia de Paris, onde a maioria dos moradores é muçulmana, para ter certeza disso.
Até começar a guerra na Ucrânia, os franceses nadavam em fartura. Tinham um vizinho dono de uma das melhores terras do mundo, fornecedor preferencial de soja, milho, trigo e outros produtos essenciais para a produção de alimentos.
Depois que os russos destruíram os campos ucranianos e tomaram as áreas mais produtivas, a Europa sentiu o baque. A inflação botou as manguinhas de fora. Além disso, a França em particular, teve 1.000 problemas, como a queda na produção de suínos e a gripe aviária que matou 12 milhões de aves em 2022. Desastre num país no qual as principais fontes de proteína são aves e suínos. Carne bovina é coisa de rico.
Os franceses implicam com o acordo Mercosul-União Europeia porque seus produtores rurais são viciados em subsídios e sem capacidade para concorrer com quem produz mais e melhor, como é o caso do Brasil. Sobra malandragem e soberba.
Na semana que se encerra, o CEO do Carrefour, Alexandre Bompard, chegou falando grosso e anunciou que deixaria de comprar carne do Mercosul, alegando estar fora do padrão sanitário europeu. A resposta veio na lata: os frigoríficos brasileiros decretaram boicote às lojas do Carrefour no Brasil e Bompard, de uma hora para outra, passou a falar fino, pediu desculpas calculando o prejuízo representado pelos mais de 20% da operação brasileira no caixa da empresa.
O que andou faltando nos últimos anos foi gente com a coragem de João Martins, presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), que decidiu apoiar os frigoríficos e encarar os franceses olho no olho.
Martins dá o exemplo de um líder que comanda um setor produtor de comida de qualidade para 1,5 bilhão de pessoas e exporta para os 4 cantos do planeta. Seu recado foi claro: conversar sim, baixar a cabeça jamais.
Os franceses, que por 2 vezes tentaram se estabelecer no Brasil nos séculos 16 e 17 e fracassaram, fazem de tudo para nos boicotar quando o assunto é produção agropecuária. Na virada do século, andou por aqui um maluquinho chamado José Bové, que se juntou com o MST para destruir uma plantação de soja transgênica da Monsanto no Rio Grande do Sul. Deu até entrevista no Roda Viva.
Oficialmente, Bové veio para o tal Fórum Social Mundial, ajuntamento de desocupados, cujo esporte predileto era tramar contra o desenvolvimento do Brasil. Exatamente como fizeram, em agosto, 24 ONGs francesas defensoras do boicote aos produtos brasileiros, como soja e carne que, acusam, são produzidas pelos destruidores da floresta amazônica. ONGs que atuam aqui financiadas pela Europa.
Quando se trata de atacar o Brasil no seu melhor, que é o agro, eles não medem esforços. Deveriam olhar para as cicatrizes deixadas por seus antepassados na África, na Ásia e no Caribe.
As empresas europeias aqui instaladas pagam impostos, criam empregos, mas financiam os programas sociais e os benefícios desfrutados pelos trabalhadores dos seus países. Cada vez que Carrefour, Casino, BIC ou L’Oréal remetem seus lucros para a França parte dele vira impostos e ajuda a manter o nível de vida, a escolaridade e o bem-estar.
O presidente Lula achou que era amigo-irmão do presidente Macron. Um sujeito como Emmanuel Macron, sócio da casa bancária Rothchild & Cie Banque, não acredita em Deus e não tem amigos; tem interesses. E grandes interesses.
Na sua última visita à Amazônia brasileira ao lado de Lula, deve ter feito muitas contas sobre quanto lucraria com operações envolvendo créditos de carbono. Seu pequeno laboratório na Guiana Francesa deve estar a 1.000 com o petróleo da Margem Equatorial, até agora proibido por aqui pelos burocratas do Ibama.
Líderes como João Martins, a senadora Tereza Cristina, ex-ministra da Agricultura, e o deputado Pedro Lupion, da Frente Parlamentar da Agropecuária, sabem muito bem que o Brasil e o Mercosul são a saída para matar a fome de uma Europa cada vez menos eficiente, menos capaz de produzir em larga escala e mais ocupada por imigrantes. Até os vinhos de Chile e Argentina superam os europeus.
O protecionismo exagerado criará distorções, igual quando, por puro protecionismo, no Brasil foi proibida a importação de produtos de informática e o contrabando floresceu. Lá, florescerá o contrabando de comida boa e barata produzida pelo Mercosul.
Fica difícil resolver qualquer impasse quando o atual governo abre mão da diplomacia profissional em troca da diplomacia ideológica, a qual cria mais problemas que soluções. Sabemos da dificuldade do Itamaraty em lidar com os franceses, pois Macron apoiou a eleição de Lula e era abertamente contra Bolsonaro, dentre outras coisas pelas grosserias desferidas contra sua mulher Brigitte.
Não será com bravatas do tipo “a França não apita nada” que Lula irá fazer valer o acordo com o Mercosul, o qual ele pretende assinar no Uruguai no mês que vem. Mesmo que seja dado um passo na assinatura, ainda haverá um longo caminho até virar realidade.
Lula poderia lembrar das atrocidades e dos genocídios (assim mesmo no plural) cometidos pelos franceses na África e no Caribe, como fez com Israel. Mas Macron é gente boa, apesar do passado de colonialismo e dominação com muito sangue, tiro e porrada. Não podemos esquecer quem eles foram e são de verdade.
E há ainda um componente político forte: os recentes protestos de produtores rurais em toda Europa assanhou a direita, vencedora em Áustria, Suécia, Holanda e deu uma sinuca de bico no chanceler alemão Olaf Scholz obrigando-o a convocar eleições no início de 2025. E nunca é tarde para lembrar que Donald Trump vem aí.
*Jornalista
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