Anistia como farsa

Por Dora Kramer
Da Folha de São Paulo

A anistia aos golpistas de variadas espécies é o tipo do assunto a respeito do qual é mais fácil falar do que realizar. Ainda assim, seus adeptos já foram além do aceitável: conseguiram pôr o tema em pauta e paralisar o Congresso em torno dele.

Brutalizados em 8 de janeiro de 2023, os três Poderes da República são agora instados a lidar com uma proposta de perdão dos crimes aos que propugnaram pelo fim do Estado de Direito em vigor no país há parcas quatro décadas.

Fala-se na produção de um acordo entre Executivo, Legislativo e Judiciário para se chegar a meios-termos entre condenações e impunidade.

Como se fossem admissíveis as seguintes situações: o Supremo Tribunal Federal fazer acertos sobre matéria que poderá julgar, o presidente aceitar a inocência de quem pretendeu impedi-lo de governar planejando até sua morte e o Congresso avalizar negociata dessa natureza.

Por mais desatinado que soe, chegamos a esse ponto em que agressores postulam perdão e os agredidos —a maioria residente no Parlamento— consideram a discussão de razoável a imprescindível.

A alegação-mestra é a de que a anistia promoveria a pacificação do Brasil. Nada mais falso. O que se pretende não é paz, e sim a reconstrução do relato histórico a fim de amenizar os fatos e fazer valer como farsa a versão de que o que houve não foi tão grave, mas apenas fruto de equívocos e pontuais excessos. Nada mais falso.

Caso o presidente da Câmara cometa a irresponsabilidade institucional de pautar o projeto, e com urgência, daí em diante nada será pacífico, a começar pela tramitação da proposta. Os defensores sinalizando oposição ao governo e este na resistência atraindo ao campo de batalha o Supremo.

No meio disso, a contrariedade da população —registrada em pesquisas—, cujas prioridades estão longe dessa anistia e muito perto da carestia, da insegurança e dos maus serviços públicos.

Uma coisa é certa: para os brasileiros a sorte dos golpistas vale menos que suas sobrevivências e o destino do país.

Por Luiz Antonio Costa de Santana*

Numa dessas manhãs em que o noticiário tributário se assemelha mais à literatura de Kafka do que à aridez esperada de um Diário Oficial, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, em seu mais recente exercício de hermenêutica fiscal, que a herança não se transmite apenas com luto, mas também com valor de mercado. Não o valor da memória, tampouco o da prudência contábil, mas aquele outro, fluido, volátil e cotado segundo a mais impiedosa cotação da realidade: o preço.

No julgamento do Recurso Especial 2.139.412/MT, sepultou-se a tênue distinção entre o valor patrimonial e o valor venal. O herdeiro, que antes recebia quotas sociais como se recebesse o retrato do avô, agora é tributado como se herdasse um shopping center. Para o Superior Tribunal de Justiça, não importa o que o contrato social diz, nem o que os livros contábeis registram. Interessa, isso sim, o que a realidade “revela”, mesmo que a realidade, como as obras de arte, diga mais sobre quem a interpreta do que sobre o objeto em si.

Trata-se de um retorno à metafísica fiscal: um tribunal que olha através das formas jurídicas e vê, ou pensa ver, a essência econômica. É o velho embate entre a forma e a substância, entre a res pública e o simulacro da contabilidade. Para o contribuinte, resta a sensação de que o planejamento patrimonial é uma peça de teatro onde o roteiro muda durante o espetáculo, e o ator, coitado, só descobre que foi punido depois do aplauso.

Mas vejamos: ao ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, aquela velha cláusula pétrea do Direito Societário, o Superior Tribunal de Justiça parece propor uma teologia fiscal segundo a qual o herdeiro não herda mais a empresa, mas sim os tijolos, o concreto, o IPTU. Como se, em vez de quotas, herdasse maquinário e pedreiro. É como se o testamento dissesse: “deixo ao meu filho, não minha empresa, mas a laje do terceiro andar.”

A jurisprudência nasce, assim, como um Minotauro legislativo: meio norma, meio oráculo. O fisco, que já era onipresente, torna-se agora também hermeneuta. E o contribuinte, nesse novo teatro da tributação, é um personagem que, como Josef K., acorda um dia e descobre que está sendo processado.

Talvez, como dizia Borges, “a realidade não é apenas estranha, é também injusta”. E se há algo de profundamente injusto nesta decisão do Superior Tribunal de Justiça, é o retrovisor em que ela se espelha: uma tentativa de corrigir, via jurisprudência, o que a legislação não ousou prever. Uma forma de dizer, com toga e acórdão, que os planejadores patrimoniais não são engenheiros da prudência, mas arquitetos da fraude.

Na Europa, de onde herdamos tanto a tradição civilista quanto a elegância do ceticismo jurídico, não se tributa o invisível. Na Alemanha, na França e até nos Estados Unidos, o templo da pragmática tributária, não se confunde herdeiro com incorporador. O valor das quotas é o que se transmite. O ativo subjacente é um eco longínquo, jamais o protagonista da cena fiscal.

Mas aqui, na pátria da forma sem substância e da norma sem previsibilidade, seguimos testando os limites da razoabilidade. A decisão do STJ não anula o planejamento patrimonial, mas o reconfigura sob o signo do medo. Daqui em diante, será necessário planejar como se se redigisse um tratado de metafísica: um olho na lei, outro na jurisprudência, e um terceiro, se possível, no oráculo do próximo julgamento do imprevisível sistema judiciário brasileiro.

Porque, como nos lembrava o velho Aristóteles, “a justiça sem prudência é a força do tolo”. E tolo, neste caso, é quem pensa que no Brasil a sucessão é apenas um ato familiar. Não: é uma peça fiscal, um ritual contábil, e agora, um litígio potencial. E o espelho da herança, antes reflexo da memória, está trincado: nele se vê, cada vez mais, o vulto do fisco.

MS.C, Ph.D.; Professor da UNEB e da Univasf; Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/Petrolina*

Por Flávio Chaves*

Ninguém ensina a levantar depois de um amor que partiu. Ensinaram a cair. A se jogar sem rede, a amar com os olhos fechados, a acreditar no “pra sempre” como se fosse cláusula contratual. Ensinaram a sonhar com domingos de preguiça a dois, cafés da manhã com riso, abraços que curam. Mas o depois? O depois é terra devastada. É escombro emocional. É ruído de silêncio dentro de casa. É ter que conviver com a ausência como se fosse inquilina.

Você acorda e não sabe o que fazer com os braços que perderam o destino. Com as mãos que antes sabiam o caminho do rosto amado, mas agora só tremem no ar, tentando alcançar o que não está mais. Não sabe onde guardar a voz, o cheiro, as promessas. O corpo ainda dorme virado pro lado de quem já não está. E a cama inteira parece um campo de batalha: de um lado, a lembrança; do outro, o que sobrou de você.

O mundo não para. E é aí que vem o gesto mais brutalmente corajoso: levantar.

Levantar com o peito afundado. Com a alma puxando a coberta pra não sair. Levantar mesmo sem acreditar que algo vai melhorar. Não por força. Por necessidade. Porque o relógio roda, a comida esfria, o trabalho chama, a vida exige presença mesmo quando tudo dentro de você está em greve. Levantar é tomar banho com o rosto encharcado de lágrimas e ninguém saber se é água do chuveiro ou do coração. É engolir o café com gosto de abandono. É sorrir no elevador com os olhos vermelhos da insônia. É responder “tudo bem” com a voz baixa e os dedos trêmulos.

Levantar é organizar a casa sem saber onde guardar a ausência. É abrir a geladeira e ver que o suco que ele gostava ainda está ali. É dobrar uma camiseta esquecida e não saber se guarda ou se cheira mais uma vez. É se obrigar a viver quando tudo dentro implora por um pouco mais de luto.

Mas aos poucos – aos lentos e tortos poucos – a gente reaprende.

Reaprende a respirar sem chorar. A sair sem olhar o celular esperando uma mensagem. A fazer compras sem pegar dois iogurtes por reflexo. A voltar pra casa e não sentir o coração despencar na porta. A cozinhar sem mesa posta pra dois. A dormir sem escutar a respiração do outro dividindo a noite.

E então, de repente, num dia qualquer, você se vê rindo. E essa risada não vem acompanhada de culpa. Nem de comparação. Ela vem limpa. Vem sua. Vem nova. E nesse riso, você percebe: não esqueceu, mas sobreviveu.

E isso já é muito.

Porque levantar depois de amar é o ato mais íntimo de resistência. É declarar ao mundo – e ao espelho – que mesmo ferido, você ainda é capaz de andar. Mesmo estilhaçado, ainda é inteiro o suficiente pra seguir. E continuar, meu amigo, é um milagre sem plateia. É um show pra ninguém. Mas é também o começo de tudo o que pode, um dia, voltar a ser amor – por você mesmo.

*Jornalista

Por Celso de Mello*

A data de 08 de janeiro de 2023 (“um dia que viverá eternamente em infâmia”, como enfatizou a eminente ministra Rosa Weber, então presidente do STF) representa, por efeito da invasão multitudinária e criminosa nela perpetrada contra os Poderes do Estado, o gesto indigno, desprezível e estigmatizante daqueles que, agindo como delinquentes vulneradores da ordem constitucional, não hesitaram em dessacralizar os símbolos majestosos da República e do Estado democrático de Direito.

Relembrar, sempre, a data de 08/01/2023, para repudiar o ultrajante vilipêndio cometido por mentes autoritárias contra o Estado de Direito – e para jamais esquecê-la –, há de constituir expressão de nosso permanente e incondicional respeito à Lei Fundamental do Brasil e de reafirmação de nossa crença na preservação do regime democrático, na estabilidade das instituições da República e na intangibilidade das liberdades essenciais do Povo de nosso País!

Naquele verdadeiro (e vergonhoso) “dies irae”, a escumalha radical, impulsionada por um inadmissível sentimento de fúria selvagem, invadiu, criminosamente, além das sedes do Congresso Nacional e da Presidência da República, o edifício do Supremo Tribunal Federal, neste provocando atos de vandalismo que SEQUER pouparam o busto de Ruy Barbosa, “Patrono dos Advogados Brasileiros”, contra quem tais delinquentes desferiram golpes que deixaram, em sua fronte, a marca de sua infame agressão!

O Supremo Tribunal Federal, sabiamente, decidiu NÃO restaurar a escultura de RUY, para marcar, para as presentes e futuras gerações – e eterna memória dos fatos (“ad perpetuam rei memoriam”) –, o dia em que a brutalidade vitimou a Justiça e ofendeu o grande patrono dos Advogados brasileiros!!!

Esses gestos de subversão explícita, típicos de uma horda de criminosos cujo primarismo permite reduzi-los ao mais grave nível de irracionalidade e de ausência total de civilidade, deixaram, para eterna e estigmatizante desonra de seus autores, um legado perverso que nos cumpre repudiar e combater: o legado inaceitável da destruição, da mentira, do ódio visceral ao regime democrático, da intolerância, do desapreço pela ideia de liberdade e do culto à barbárie!

A investida criminosa dessa turba insana contra o Supremo Tribunal Federal, ‘sentinela das liberdades’, no dizer de Aliomar Baleeiro, e contra Ruy Barbosa, ‘o construtor da República’, constitui a imagem mais expressiva (e negativa) do espírito destrutivo, pervertido e disruptivo da malta que invadiu (e dessacralizou), no dia 8 de janeiro de 2023, os símbolos augustos (e perenes) do Estado Democrático de Direito!

O grave momento histórico então vivido pelo Brasil revelou-nos que as instituições democráticas de nosso País e as liberdades fundamentais dos cidadãos, porque expostas a ataques dos hunos que as assediaram com o subalterno (e corrosivo) propósito de vulnerá-las, sofreram risco imenso em sua integridade!

Naquele momento delicado vivido pelo Brasil, avizinhou-se, perigosamente, a aproximação de tempos procelosos e nublados, impregnados, por seu efeito desestabilizador, de extrema gravidade e de sérias consequências para o regime democrático!

Tornava-se importante, por tal razão, que aqueles que respeitavam a institucionalidade e que prestavam fiel reverência à nossa Constituição reagissem – e reagissem sempre com apoio e sob o amparo da Lei Fundamental do Brasil — às sórdidas manobras golpistas, às sombrias conspirações autocráticas e às inaceitáveis tentações pretorianas de submeter o nosso País a um novo e ominoso período de supressão das liberdades constitucionais e de degradação e conspurcação do regime democrático!!

A resposta do povo brasileiro às graves (e ameaçadoras) manifestações então promovidas por lideranças golpistas, todas elas indignas da majestosa importância da Lei Fundamental de nosso País, mostrava-se necessária e imprescindível! E essa resposta veio com apoio na “rule of law”, repelindo as tentações autoritárias e as práticas abusivas que degradavam, deformavam e deslegitimavam o sentido democrático das instituições e a sacralidade da própria Constituição!

Superado aquele grave momento em que uma turba insana buscava solapar os alicerces da República e do Estado democrático de Direito, tornava-se imprescindível que a cidadania se pronunciasse, de forma vigorosa e inequívoca, como posteriormente o fez na “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros”, em defesa da intangibilidade do regime democrático e de todos os consectários que lhe são inerentes, repelindo os graves sucessos ocorridos em 08 de janeiro de 2023 e repudiando o comportamento intolerante e audacioso daqueles que insistiram em ignorar o sentido essencial dos valores democráticos e a importância fundamental das instituições da República!

São os períodos de crise que revelam a alma e o caráter das pessoas, como destacava Thomas Paine, no século 18, em seus “The Crisis Papers”!

Foi aquele – como ainda continua a sê-lo – um momento que nos permitiu revelar nosso real compromisso com os valores da República e com os signos legitimadores do Estado democrático de Direito, demonstrando, no que concerne ao Supremo Tribunal Federal, que os seus Juízes, impregnados de autêntico “sentimento constitucional”, agem, como sempre agirão, de modo impessoal, com integridade moral e com inteira autonomia intelectual, fazendo preservar, em momentos nos quais há grave periclitação da estabilidade institucional e de séria lesão à ordem democrática, a supremacia da Constituição e a autoridade das leis do Estado!

Afinal, como assinalava Cícero, já no século 1 a.C., “Somos servos da lei, para que possamos ser livres” (“Servi legum sumus, ut liberi esse possimus”)!!!

Torna-se vital reconhecer que o regime democrático, analisado na perspectiva das delicadas relações entre o Poder e o Direito, não terá condições de subsistir, quando as instituições políticas do Estado falharem em seu dever de respeitar a Constituição e as leis da República, pois, sob esse sistema de governo, não poderá jamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento ou de um só grupo!

O sentimento de respeito à Constituição da República, por ser mais intenso, haverá de sobrepujar e neutralizar quaisquer impulsos emanados de mentes autocráticas que se aventurem, criminosamente, lançando-se em ensaios que visem a fragilizar, a desvalorizar e a transgredir a ordem constitucional!

Há que se ter sempre presente a grave advertência do saudoso e eminente ministro Aliomar Baleeiro, do Supremo Tribunal Federal, em manifestação que recordava ao nosso País que, enquanto houver cidadãos dispostos a submeter-se e a curvar-se ao arbítrio e à prepotência do poder, sempre haverá vocação de ditadores.

Daí a significativa e vital importância do Poder Judiciário, cujos magistrados saberão agir com independência e liberdade decisória, dispensando tutela efetiva aos direitos básicos da cidadania e preservando a integridade da ordem constitucional!

Cabe sempre advertir, de outro lado, que o poder militar está sujeito, historicamente, nas democracias constitucionais, ao poder civil, cabendo-lhe, unicamente, as estritas funções institucionais que lhe foram atribuídas pela Constituição!

O poder castrense, que NÃO dispõe de atribuição moderadora nem de função arbitral que lhe permita resolver – como se fosse uma anômala (e estranha) instância de superposição – eventuais conflitos entre as instituições civis do Estado, há de submeter-se, por inteiro e incondicionalmente, à autoridade suprema da Constituição, sob pena de a República democrática – sob cuja égide vivemos – dissolver-se, esmagada pelo peso e deslegitimada pelo estigma de uma estratocracia desestabilizadora da ordem democrática e opressora das liberdades e franquias individuais!

A necessidade do controle civil sobre as Forças Armadas – advertem os estudiosos da matéria (como Eliézer Rizzo de Oliveira, “Democracia e Defesa Nacional: A criação do Ministério de Defesa na Presidência de FHC”, São Paulo, 2005, pág. 84) – busca definir parâmetros e implementar os seguintes objetivos:

“a) O comando inquestionável das Forças Armadas pelo Chefe do Poder Executivo;

b) Garantir a imparcialidade política das Forças Armadas;

c) Estabelecer uma estrutura de ordenamento legal das Forças Armadas que as submeta [aos princípios essenciais do] Estado democrático;

d) Qualquer decisão quanto ao emprego do poder militar deve ter origem exclusiva nas decisões políticas [das autoridades civis]; e

e) Reafirmar o caráter nacional das Forças Armadas.”

Em um contexto de grave crise que afetava e comprometia, de um lado, os próprios fundamentos ético-jurídicos que dão sustentação ao exercício legítimo do poder político e que expunha, de outro, o comportamento anômalo de protagonistas relevantes situados nos diversos escalões do aparelho de Estado, tornava-se perceptível a justa, intensa e profunda indignação e inquietação da sociedade civil perante aquele quadro deplorável de periclitação da ordem democrática e de perversão da ética do poder e do direito!

Em situações tão graves assim, costumam insinuar-se pronunciamentos ou registrar-se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade que assuma: pretorianismo oligárquico, pretorianismo radical ou pretorianismo de massa (SAMUEL P. HUNTINGTON, “Pretorianismo e Decadência Política”, 1969, Yale University Press).

A nossa própria experiência histórica revela-nos – e também nos adverte – que insurgências de natureza pretoriana, à semelhança da ideia metafórica do ovo da serpente (República de Weimar), descaracterizam a legitimidade do poder civil e fragilizam as instituições!

Impunha-se repelir, por isso mesmo, qualquer manifestação de um pretorianismo oligárquico que buscasse sufocar e dominar, com grave lesão à ordem democrática, as instituições da República!

Já se distanciam no tempo histórico os dias sombrios que recaíram sobre o processo democrático em nosso País (1964–1985), em momento declinante das liberdades fundamentais, quando a vontade hegemônica dos curadores militares do regime político então instaurado sufocou, de modo irresistível, o exercício do poder civil.

É preciso ressaltar que a experiência concreta a que se submeteu o Brasil no período de vigência do regime de exceção (1964/1985) constitui, para esta e para as próximas gerações, marcante advertência que não pode ser ignorada: as intervenções pretorianas no domínio político-institucional têm representado momentos de grave inflexão no processo de desenvolvimento e de consolidação das liberdades fundamentais.

Intervenções castrenses, quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem, na lógica do regime supressor das liberdades que se lhes segue, a diminuir (quando não a eliminar) o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando, desse modo, com danos irreversíveis ao sistema democrático, a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania.

Tudo isso é inaceitável porque o respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa, no regime democrático, limite inultrapassável a que se devem submeter os agentes do Estado e as próprias Forças Armadas!

Faça-se também saber, aos que costumam invocar, com certa habitualidade, o valor nobre e elevado do patriotismo, o juízo de reprovação formulado pelo doutor Samuel Johnson (nome expressivo da literatura britânica do século 18), em frase ácida que dirigiu, em veemente tom crítico, a William Pitt, o Velho (“The Elder”), 1º Conde (1st Earl ) de Chatham e Primeiro-Ministro do Reino Unido (“The Patriot Minister”) , em razão do que ele, Johnson, entendia constituir uso abusivo, por esse político britânico, da palavra “patriotismo”!

Por tal razão, vale relembrar, conforme registra James Boswell, biógrafo escocês do doutor Samuel Johnson, a frase célebre por este proferida em 07 de abril de 1775:

“Patriotism is the Last Refuge of a Scoundrel (“O Patriotismo é o último refúgio de um Canalha”).

Não quero nem pretendo atribuir aos que se dizem patriotas, generalizando-o, aquele juízo de desvalor formulado por Samuel Johnson. A menção que fiz busca apenas relembrar que, no curso dos eventos históricos, podem surgir episódios de utilização abusiva da expressão pertinente a quem se atribui, monopolísticamente, com exclusão daqueles que seguem orientação política diversa, a condição privativa de patriota.

A observação que venho de fazer torna pertinente invocar, no sentido por mim exposto, a célebre definição de “Pátria” formulada por Ruy Barbosa em discurso proferido no Colégio Anchieta, em 1903:

“A pátria não é ninguém; são todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à ideia, à palavra, à associação. A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um monopólio, nem uma forma de governo; é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade.”

Não podemos nem devemos jamais esquecer que, em 08 de janeiro de 2023, os símbolos da República e do regime democrático foram gravemente profanados por delinquentes movidos por um sentimento desprezível e irracional de ódio e de intolerância e que não hesitaram em dessacralizar, com atos criminosos e atentatórios à integridade do Estado de Direito, o sentido mais elevado da supremacia da Constituição e das leis que regem uma sociedade civilizada!

O que pode explicar o comportamento de pessoas retrógradas e despreparadas que se valem da violência política para impor, de modo ilegítimo e autoritário, a sua distorcida concepção de mundo?

Esses agentes do obscurantismo, que se notabilizaram por seu perfil intolerante e visão hostil às instituições democráticas, beneficiaram-se, paradoxalmente, da tolerância, que constitui um dos signos configuradores do próprio regime democrático!

Torna-se importante não desconhecer, neste ponto, a conhecida advertência de Karl Popper quando, ao examinar o tema da sociedade aberta (e democrática) em face de seus inimigos, responde à seguinte indagação: até que ponto a democracia, para autopreservar-se, deve tolerar os intolerantes?

Para Popper, “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da própria tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. (…)!

É inquestionável que uma sociedade fundada em bases democráticas deve ser essencialmente tolerante e, por isso mesmo, cabe-lhe estimular o respeito harmonioso na formulação do dissenso, em respeito aos que divergem de nosso pensamento, de nossas opiniões e de nossas ideias!

Mas não deve nem pode viabilizar a “tolerância ilimitada”, pois esta, se admitida, levará à supressão da própria tolerância, à eliminação dos tolerantes e à aniquilação da própria ideia e sentido de democracia!!!

Neste momento de nosso processo político, revela-se essencial que a cidadania comprometida com o respeito à institucionalidade empenhe-se na defesa incondicional das instituições democráticas de nosso País e na proteção das liberdades fundamentais, para que não voltem a expor-se, como sucedeu em passado recente, a ataques covardes e criminosos dos hunos que as assediaram com o subalterno (e corrosivo) propósito de vulnerá-las e de vilipendiá-las em sua integridade!

Torna-se importante, por tal razão, que aqueles que respeitam a institucionalidade e que prestam fiel reverência à nossa Constituição reajam – e reajam sempre com apoio e sob o amparo da Lei Fundamental do Brasil – às sórdidas manobras golpistas, às sombrias conspirações autocráticas e às inaceitáveis tentações subversivas de submeter o nosso País a um novo e ominoso período de supressão das liberdades constitucionais e de degradação e conspurcação do regime democrático!

Necessário, pois, reagir, com vigor e determinação, sempre sob o império da lei, à ação criminosa de mentes autoritárias e de pessoas infensas ao primado da ideia democrática, que agem movidas por inaceitáveis tentações autoritárias e por práticas abusivas e sediciosas que degradam, deformam e deslegitimam o sentido democrático das instituições e a sacralidade da própria Constituição!

Eis porque a “tolerância ilimitada” (Popper), longe de refletir a essência mesma do espírito democrático, culmina, paradoxalmente, por viabilizar a construção de estruturas autoritárias destinadas, no contexto de um projeto sórdido de poder, ao controle institucional do Estado e ao domínio político da sociedade civil, ensejando frontal transgressão aos postulados éticos e jurídicos que informam e sustentam as bases de uma sociedade livre, aberta, solidária, fraterna e civilizada!

Em uma palavra: são esses os verdadeiros delinquentes da República e marginais da ordem institucional, pessoas desprezíveis sobre quem deve recair, com todo o rigor, a força da lei, respeitando-se, no entanto, quanto a eles, sempre, o postulado inafastável do devido processo legal.

As cenas de selvageria e degradação praticadas por golpistas e radicais imbuídos da vontade (criminosa) e determinação (ilícita) de assaltar as instituições democráticas e de usurpar o poder revelam que os novos bárbaros chegaram, em 08 de janeiro de 2023, à Capital da República, com o objetivo subalterno (e subversivo) de destruir a ordem institucional, de renegar o primado dos mais elevados padrões civilizatórios e de fazer instaurar, contra a vontade majoritária do povo, mediante ações destituídas de qualquer coeficiente de legitimidade, um regime marginal de intolerância, de poder absoluto, de ódio, de violência política e de supressão das liberdades fundamentais!

As instituições democráticas não conseguirão subsistir em um ambiente político e social convulsionado onde a “tranquilitas ordinis” (a que se referia Santo Agostinho) é rompida, a institucionalidade, desrespeitada, as franquias individuais, vilipendiadas, e a autonomia dos poderes do Estado, transgredida!

Sem um Parlamento independente, sem um Poder Judiciário protegido contra indevidas intrusões de outros poderes e sem um Governo capaz de agir, no plano executivo, sem injunções marginais de outros estamentos, instituições e corporações, respeitada, sempre, como expressão própria (e superior) do regime democrático, a primazia do poder civil sobre o poder castrense, não prevalecerá, jamais, uma cidadania livre nem subsistirá, íntegra, a ordem fundada no Estado democrático de Direito.

Esse é o dilema ético e político – civilização ou barbárie – que o assalto brutal, criminoso e inconstitucional aos Poderes da República (Const. Federal, art. 5º., inciso XLIV), verdadeiro “crime contra a nacionalidade”, gerou no espírito dos cidadãos conscientes e responsáveis, comprometidos com a intangibilidade do princípio democrático e com o respeito incondicional à autoridade suprema da Constituição e das leis da República.

Os fatos de 08 de janeiro de 2023, verdadeiro “dies irae”, tornaram necessário proceder-se à escolha consciente e responsável entre civilização e barbárie, entre Eros e Thanatos, entre liberdade e submissão, entre o respeito à ordem jurídica e às instituições democráticas, de um lado, e a desordem generalizada, o caos, a anarquia, a intolerância, o fundamentalismo, o ódio, a violência política e o desapreço total pela democracia constitucional, de outro, provocados pelos novos bárbaros (que transpuseram, então, em gesto atrevido e criminoso, os umbrais da Cidade, conspurcando, com seu gesto indigno, o domínio civilizado do império do Direito e da “rule of law”).

Clezão e a necropolítica bolsonarista 8/1: NÃO ESQUECEREMOS Sobem os créditos, mas ‘Ainda estou aqui’ segue em Brasília

BUSCA-SE, agora, ANISTIAR as lideranças golpistas (civis e militares) e todos aqueles que, direta ou indiretamente, concorreram para a prática criminosa da tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, em concurso material com outros 4 (quatro) delitos: tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada, deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado!

Entendo que tal pretensão encontra obstáculo na própria ordem constitucional.

Conceder anistia a quem perverte a democracia e subverte o Estado de Direito traduz ato que afronta e dessacraliza, uma vez mais, a soberana autoridade da Constituição da República!

O Congresso Nacional NÃO pode exercer seu poder de legislar, em matéria de anistia , (1) naquelas hipóteses pré-excluídas pela Constituição do âmbito normativo desse ato de clemência soberana do Estado (tortura, racismo, tráfico de drogas, terrorismo, crimes hediondos e delitos a estes equiparados, CF, art. 5º., n. 43), (2) nos casos em que o Legislativo incidir em desvio de finalidade, distorcendo ou subvertendo a finalidade dessa modalidade do poder de graça, como ocorreria se a concessão de anistia objetivasse atribuir ao Parlamento a condição anômala (e inadmissível) de órgão revisor das decisões judiciais (as do STF, na espécie), como revela a intenção motivadora do projeto de lei (e de seu substitutivo) ora em curso na Câmara dos Deputados, (3) em situação que caracterize ofensa ao princípio da separação de poderes (vício em que também incide a proposição legislativa acima mencionada) e (4) se a medida tiver por finalidade beneficiar qualquer pessoa que haja ofendido ou desrespeitado os cânones inerentes à democracia constitucional.

O Supremo Tribunal Federal, em importante precedente sobre os limites do poder de graça (que NÃO tem caráter absoluto), firmou orientação no sentido (1) de que atos concessivos do benefício da graça são plenamente suscetíveis de controle jurisdicional, circunstância que legitima, plenamente, a atividade fiscalizadora do STF, a quem incumbe, por expressa delegação da Assembleia Constituinte, o “monopólio da última palavra” em matéria constitucional, (2) de que o órgão competente para agraciar não pode transgredir o postulado da separação de poderes, que traduz dogma protegido por cláusula pétrea explícita, (3) de que esse mesmo órgão (o Congresso Nacional, no caso) não pode exercer tal prerrogativa institucional com desvio de finalidade e (4) de que a concessão da graça, como a anistia, não pode beneficiar quem houver atentado contra o Estado Democrático de Direito, regime político amparado por cláusula pétrea implícita (ADPFs ns. 964/DF, 965/DF, 966/DF e 967/DF, Rel. Ministra Rosa Weber).

No caso do projeto de lei concessivo da anistia, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, tal proposição legislativa incide, juntamente com seu substitutivo, em algumas transgressões à Constituição, especialmente (1) porque visa beneficiar quem atentou contra o Estado Democrático de Direito e (2) porque, ao incidir em desvio de finalidade, busca converter o Congresso Nacional em anômalo órgão revisional (ou instância de superposição) em face das decisões do Supremo Tribunal Federal, assim transgredindo o princípio da separação de poderes.

Note-se, portanto, que a proposição legislativa em tela ofende postulados constitucionais protegidos por cláusulas pétreas, tanto de natureza explícita quanto de caráter implícito!

CONCLUINDO: Profanadores da República e conspiradores da democracia constitucional, como todos aqueles que se envolveram no planejamento, no financiamento e na execução dos atos criminosos a que se referem o projeto de lei e o seu substitutivo, apoiados por lideranças políticas que buscam conceder-lhes anistia, não são dignos nem passíveis de merecer esse benefício da clemência soberana do Estado, porque a tanto se opõe a autoridade suprema da própria Constituição!

*Ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, biênio 1997–1999.

Por José Nêumanne Pinto*

Conheci Mário Vargas Llosa pessoalmente em sua cidade, Lima, na ocasião em que fui ao Peru cobrir, para o Jornal do Brasil, uma eleição presidencial na qual saiu vencedor Alan Garcia, jovem candidato do líder socialista Haya de la Torre. Vi-o pela primeira vez na seção em que foi votar. Os jornalistas que cobriam a votação fizemos uma entrevista coletiva curta falando mais de política do que literatura. Fiquei frustrado, porque eu queria saber mesmo dele como conseguia dominar o humor como se fosse comediante profissional, um Cantinflas limenho.

Não tive como introduzir a pergunta e ia precisar de uma conversa bem mais longa, mas só tive com ele alguns encontros fortuitos e muito breves, como uma vez na Livraria Cultura, apresentados um ao outro pelo livreiro Pedro Herz. Em todos os encontros ele foi sempre frio e cortês, diferente do passional Gabriel Garcia Márquez, sobre cuja obra escreveu um verdadeiro clássico da teoria literária História de um Deicídio. Eram muito amigos. Tornaram-se inimigos mortais, primeiro pessoalmente.

Gabo, um gênio mulherengo e enxerido, assediou Patrícia, sua mulher, a prima com quem se casara depois das núpcias com a tia Júlia, título de um clássico da comédia, Tia Júlia e o Escrivinhador. As relações dos dois gênios se azedariam ainda mais quando o autor de Cem Anos de Solidão tornou-se um fã público de Fidel Castro e o de A Festa do Bode (sobre o tirano dominicano de direita Trujillo) inimigo de todas as ditaduras da esquerda e da direita.

Nélida Piñon, nossa amiga comum, indicou-me para escrever sobre política brasileira no jornal El Nuevo Herald, versão em castelhano do Miami Herald, cujo editor de opinião era seu filho, Álvaro. Não conheci pessoalmente meu editor de então e meus textos estavam alinhados com o pensamento liberal da família por convicção, não por conveniência.

Quando estive em Lima e o conheci fiz questão de tomar um trago no boteco La Catedral, cenário de Conversa na Catedral, na minha opinião seu melhor romance. Uma coincidência interessante de nossos desencontros é que nunca falamos sobre Canudos, tema de seu romance A Guerra do Fim do Mundo. A coincidência é que, quando entrevistei Jorge Luís Borges em Buenos Aires e lhe perguntei sobre que autor estava “lendo”, ele respondeu, rápido “Euclides”. Eu fiquei espantado: “O senhor lê em português?” E o portenho respondeu, impaciente: “Eu leio Euclides”.

Agora, ao ter notícia na noite passada de seu passamento, pensei que nunca mais terei como conversar com don Mário sobre Os Sertões. Afinal, primeiro morreu nossa amiga comum. Nélida, que ficou de promover o encontro. Álvaro ainda é vivo, mas parece que estavam de mal, depois que o pai trocou a mãe pela ex-mulher de Júlio Iglesias. Isto é o de menos: a falta maior que me faz é não saber qual será a nova aventura literária do escritor, que pariu obras de inimitável humor como Pantaleão e as Visitadoras, cuja versão cinematográfica vi em Caracas, quando a Venezuela era democrática e o Brasil penava na ditadura Este sempre foi um dos meus esportes favoritos.

*Jornalista e escritor

Por Henrique Rosa*

A história da humanidade está repleta de inexperientes que, por vezes, mentem — como Raquel vem mentindo — para melhorar sua imagem.

Estamos chegando ao mês de maio, e os alunos da rede pública estadual tiveram que acuar a governadora em Igarassu, reivindicando melhorias no ensino, pois estão sem o kit escolar (material didático), sem fardamento, sapato, escova, pasta de dente e com merenda ruim — inclusive suco de água com açúcar, segundo a fala dos estudantes.

Raquel possui um talento universal para engabelar a população, e isso já não nos espanta mais.

Não há dinheiro para colocar sabonete nas escolas, mas foram disponibilizados 3 milhões de reais para gastar com uma Bienal da União Nacional dos Estudantes, no mês passado, desperdiçando dinheiro público de forma irresponsável.

É um governo de imaginação, maquiado de promessas, sendo suas tergiversações desprovidas de poder de persuasão.

É um governo de ficção, congelado, parecendo um entretenimento infantil, se transformando em pó — literalmente reduzido às cinzas.

*Advogado

Por Marlos Porto*

Inadmissível a morte de um ambulante por policiais de São Paulo. O vídeo divulgado na mídia nacional mostra que ele usa uma barra de ferro para se defender de agressões de policiais com cassetetes, e não é nesse momento que ele é baleado, mas depois, quanto tenta se retirar com suas mercadorias em uma carroça.

Vergonhosamente, a polícia paulista, sob a batuta trágica de Tarcísio, parece ter ignorado completamente no caso em tela a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, instituída pela Lei Federal nº13.874/2019, do governo Jair Bolsonaro (uma das melhores normas do seu governo, assim como a lei de abuso de poder).

O senegalês Ngange Mbaye, de 34 anos (que deixa uma companheira brasileira grávida de sete meses), morto na tarde do dia 11 de abril de 2025 na Rua Joaquim Nabuco, no Brás, em São Paulo, não estava vendendo sentenças, não estava vendendo emendas parlamentares nem vendendo patrimônio público a preço de banana. Decididamente, Mbaye não merecia morrer.

Na Tunísia, em 2010, o ambulante Muhammad Bouazizi se imolou em praça pública após uma situação parecida, em que fiscais apreenderam suas mercadorias. Isso desencadeou protestos maciços no país, que resultaram na queda do governo em Túnis, no que ficou conhecido como o início da Primavera Árabe.

Não posso deixar de expressar um fio tênue de esperança de que a trágica morte de Mbaye leve nosso povo a protestar dura, mas pacificamente, contra os mais variados descalabros existentes nos três níveis federados e nos três poderes, como alerta para que cessem as injustiças e os crimes cometidos nas diversas esferas de poder pelo país afora. Esperança de que neste outono surja a nossa Primavera Brasileira.

E se dizem que o esquecimento é pior que a morte, que o sagrado vulto do grande Joaquim Nabuco, cuja memória foi manchada pelo sangue de um inocente derramado em uma rua que leva seu nome, se erga sobranceiro sobre as mentes e os corações de nossos concidadãos, para que não deixem esse caso se tornar mais uma página morta do livro das iniquidades impunes, que são, aos borbotões, esquecidas nas catadupas das sucessivas tragédias nacionais.

*Bacharel em Direito

Por Marcus Prado*

Há manifestos históricos dirigidos à consciência livre dos homens que deveriam ser lidos no sentido mais amplo da palavra e seus significados, por todas as pessoas comprometidas com o futuro da ciência em benefício da humanidade. Um corajoso exemplo nesta hora vem dos cientistas ligados às universidades e institutos de pesquisa com a Carta ao Povo Americano em defesa da ciência do país. Quase dois mil pesquisadores que assinaram o manifesto repudiam os cortes no financiamento para pesquisas cometidas pelo empresário e presidente Donald Trump. Todos os signatários são membros eleitos da Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA, e entre eles vencedores do prêmio Nobel.

A situação assumiu tamanha gravidade (os números esclarecem sem rodeios) que a revista Nature, uma das mais importantes do mundo, realizou uma enquete entre cientistas desse país. O resultado é que 75% dos pesquisadores entrevistados afirmaram que repudiam os atos do presidente, estão repensando as suas carreiras e começam a procurar universidades, laboratórios e centros de pesquisa fora dos Estados Unidos, principalmente a universidade de Columbia, em Nova York. US$ 185 milhões em financiamento federal para a Universidade da Pensilvânia foram cortados, alegando que a instituição “força mulheres a competirem contra homens nos esportes”.

“Espantosamente, o governo Trump está desestabilizando empreendimentos de altíssima necessidade ao cancelar o financiamento para pesquisa, demitir milhares de cientistas, remover o acesso público a dados científicos e pressionar pesquisadores a alterar ou abandonar seu trabalho por motivos ideológicos”, diz a Carta. Não deu, para o noticiário internacional, detalhar alguns currículos da lista dos quase dois mil cientistas americanos.

Tive a curiosidade de pesquisar alguns nomes isolados por meio das redes virtuais e fiquei convencido de que o objetivo é minar a confiança da população na ciência e remover evidências científicas que possam se contrapor a interesses, não só econômicos. A ordem é dar cortes inimaginados nos 60% dos recursos do governo destinados às universidades.

 Essas instituições requerem vultosos recursos para cumprir suas funções, pois elas geralmente mantêm hospitais universitários, executam numerosos serviços de extensão, formam a elite dos professores do país e nelas são desenvolvidas pesquisas que dependem de insumos e equipamentos sofisticados. Falta de investimentos, bolsas de pesquisa congeladas por nove anos, corte de verba para manutenção de equipamentos nunca foi estranho no Brasil.

Nosso país pode ter perdido cerca de 6,7 mil cientistas nos últimos anos, que foram continuar suas pesquisas no exterior, segundo estimativas do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, veiculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. Para nunca esquecer a era nefasta do Brasil, do ditador Getúlio Vargas, quando a ciência voltou a estado primitivo: O pernambucano do Recife Mário Schenberg, visto como o renascentista da ciência brasileira, que tudo lhe seria negado por motivo ideológico, preso, torturado, exilado (seria um dos 5 maiores físicos do século em que viveu), para poder estudar fora do Brasil teve que apelar para o jogo de bicho. Voltaire tinha razão ao dizer que todos os acontecimentos estão encadeados uns aos outros por uma fatalidade.

*Jornalista

Por Ney Lopes

Do Blog do Ney Lopes

A Argentina, após atravessar sérias crises políticas e econômicas, continua a enfrentar desafios como a eliminação de subsídios e a demissão de funcionários públicos. No entanto, a pobreza recuou e o país teve um segundo semestre de 2024 mais positivo.

O maior desgaste se concentra na eliminação de subsídios para serviços básicos, como luz, água e transportes públicos; na demissão de milhares de funcionários públicos; na diminuição do reajuste de salários, aposentadorias e pensões; no congelamento de obras públicas; na desestatização e privatização de empresas estatais; e no “choque econômico” do primeiro semestre de 2024, que fez o PIB argentino cair 1,7% em relação a 2023.

Por outro lado, a pobreza recuou em 2024; no terceiro trimestre, a atividade econômica avançou 4,3%; no quarto trimestre, avançou 1,4%; e a economia do país teve um segundo semestre mais positivo.

Algumas das medidas do governo argentino incluem a abertura da economia para mais exportações e importações, além da eliminação de uma lei que limitava os aumentos de preços em produtos da cesta básica.

O peso se fortaleceu no país e o real caiu no Brasil. Isso faz com que o paraíso do baixo custo de vida tenha desaparecido. Uma onda de brasileiros deixa a Argentina, porque é “inviável” para eles a permanência no país.

A moeda argentina caiu 54%, com o objetivo de conter a inflação, que chegou a 211%. No momento, o grande enigma para a economia argentina é que, enquanto o peso se fortalecia ao ser desvalorizado em ritmo inferior ao da inflação, o dólar oficial ficou defasado em relação ao custo de vida, perdendo grande parte de seu poder de compra.

Como resultado, surgiu um novo fenômeno para os argentinos: a inflação em dólares, que chegou a 70% e vem encarecendo os alimentos. O país está entre os que propuseram reduzir tarifas e barreiras não tarifárias em linha com a estratégia de reciprocidade promovida pelo governo Trump.

Argentina, juntamente com a Índia, o Vietnã e Israel, expressaram sua disposição de apoiar a política dos Estados Unidos, relaxando suas próprias restrições comerciais.

Nota-se que Milei quer tirar vantagem do bom relacionamento que tem com Trump. Com certeza, só terá sucesso caso os Estados Unidos saiam ganhando A lógica egoísta de Trump é inflexível. Só cede se ganhar alguma coisa.

Por Elio Gaspari

Do jornal O Globo

Está na rede o documentário “Pindorama: Uma História do Brasil Ancestral” dirigido pelo jornalista Marcos Rogatto e produzido por Patrícia Ogando. Com 43 entrevistas de arqueólogos e paleontólogos, bem como visitas a dezenas de sítios históricos e museus, ele conta a vida de Pindorama há milhões de anos. Dura 98 minutos e traz belas lições.

A primeira expõe patrocínios culturais bem direcionados pela prefeitura de Campinas e pelo Ministério da Cultura. Com a segunda, valoriza gerações de cientistas e leva os curiosos da cultura dos povos que viviam nesta terra há uns 18 mil anos. O fóssil de Luzia, achado em Lagoa Santa (MG), tem 11,5 mil anos.

Nesta parte, “Pindorama” expõe, com critério de bom gosto, o vigor artístico das cerâmicas. A peça mais antiga do mundo pode ter sido feita na Amazônia. Hoje, novas tecnologias permitem ver rastros de civilização debaixo da floresta. Já acharam 24 novas estruturas e elas seriam mais de 10 mil.

Mais de uma centena de megalitos do Parque Arqueológico do Solstício, no Amapá, com alguns pesando quatro toneladas, foram movidos há mais de mil anos.

O Parque da Serra da Capivara, no Piauí, com dois belos museus e mais de mil sítios arqueológicos, alguns datados com 50 mil anos, guarda o Zuzu, um esqueleto de dez mil anos.

É na segunda parte de “Pindorama” que chegam surpresas. Ela trata de um tempo em que os continentes formavam um só bloco. Os dinossauros mais antigos, que viveram há cerca de 233 milhões de anos, surgiram onde hoje estão o Sul do Brasil e a Argentina. As rochas dos fósseis do Sítio Paleontológico da Alemoa, em Santa Maria (RS), seriam as mais antigas do mundo.

No Museu da Ciência Professor Tolentino, de São Carlos (SP), e no Vale dos Dinossauros, em Sousa (PB), estão as pegadas dos dinos. Em Uberaba (MG), foram criados lindos geoparques e a comunidade criou o Museu dos Dinossauros, no distrito rural de Peirópolis. Lá está o fóssil de Uberabatitan ribeiroi, com seus 27 metros de comprimento, achado em 2004.

O primeiro dinossauro com penas conhecido no mundo viveu no Ceará, há 115 milhões de anos. Encontrado em 1996, passou um quarto de século nas prateleiras de um museu alemão. Em 2023 retornou ao Brasil.

O “Pindorama” de hoje tem uma geração de arqueólogos, paleontólogos, museólogos e ambientalistas que cuidam desse patrimônio. O documentário mostrou alguns deles.

Na semana passada, graças a esses estudiosos e ao Ministério Público Federal (MPF), voltaram ao Brasil 25 fósseis retirados clandestinamente do Ceará e levados para a Inglaterra. Avaliadas em cerca de R$ 4 milhões, as peças irão para o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, que fica em Santana do Cariri (CE).

Outra equipe do MPF tenta resgatar um esqueleto quase completo de pterossauro da espécie Anhanguera com quase 4 metros de envergadura e outras 45 peças que estão na França.

A Agência Brasil informa que desde 2022 já foram resgatados mais de mil fósseis levados de forma irregular para a Europa. A História do Brasil é linda desde antes da chegada dos europeus e mesmo do gênero humano.

Serviço: “Pindorama” será exibido no dia 2 de maio na Cinemateca do MAM, no Rio, e no dia 23, na Rabeca Cultural, em Campinas.
Disponível no YouTube.

Trump piscou

Como os dinos extinguiram-se, é maliciosa qualquer suposição de que tenham deixado descendência nos Estados Unidos, mas Donald Trump piscou. Depois de ter abalado as economias mundiais, ele anunciou uma moratória em parte do seu “tarifaço”. Como a iniciativa partiu de poucas cabeças humanas socorridas por aplicativos de inteligência artificial, o doutor taxou até ilhas de pinguins.

Mais calmo, ouviu seu secretário do Comércio e o ronco das Bolsas. Ao seu estilo, no mesmo dia em que recuou, tratou da vazão dos chuveiros americanos, que o obrigam a gastar 15 minutos para molhar seus “lindos cabelos”. Pura gabolice. Nem ele tem tantos cabelos, nem os chuveiros são tão avarentos. No entanto, conseguiu que se perdesse tempo falando nisso.

Trump adora falar e faz o que lhe vem à cabeça. Como não há remédio para moderar suas ideias, vale a pena lembrar que em dois momentos os Estados Unidos descarrilaram pelo que os maganos diziam, seguindo o estilo da marquetagem.

Depois do crash da Bolsa de 1929, foi o presidente americano Herbert Hoover. Em dezembro, quando a Bolsa de Nova York tinha perdido boa parte do seu valor, ele disse que as coisas haviam “voltado ao normal”. Em maio de 1930 anunciou que “o pior já passou”.

Até então, ele havia feito mais coisas certas do que erradas. Em junho, Hoover assinou a lei do Congresso que elevou as tarifas de importação a patamares nunca vistos e agravou a crise. No caminho, pespegaram-lhe uma frase de que a prosperidade estava próxima. Ele perdeu a eleição e, sendo um homem capaz, passou por irredutível.

Anos depois, em 1968, o comandante das tropas americanas no Vietnã, general William Westmoreland, sabia que os vietcongues e o Norte comunista preparavam uma ofensiva, menosprezou-a e ela veio em janeiro. Do ponto de vista militar, custou caro aos comunistas. A “pavonice” do general alimentou a ideia de que os americanos haviam sido batidos, e a estrela de Westmoreland apagou-se.

Tarcísio se meteu com o Poupatempo

O governador paulista Tarcísio de Freitas é acusado de estar sucateando o Poupatempo com o objetivo de privatizar o sistema de processamento de dados do Estado. Carioca, talvez nunca tenha entrado numa agência do Poupatempo. Elas funcionam melhor que os governos Federal e dos estados. Muito melhor, seria “Poupatempar” a máquina estatal.

Deixando esse argumento de lado, o que não é pouca coisa, vale lembrar que o crime organizado infiltrou-se em Polícias Militares e secretarias de Segurança pelo Brasil afora. Não há notícia de bandido chancelado pelo Poupatempo.

Agora mesmo, foi a partir do Poupatempo que a polícia pegou o juiz aposentado José Eduardo Franco dos Reis, que usava uma delirante identidade inglesa com sete nomes. Pode-se imaginar que tipo de relação teria com o crime organizado um Poupatempo privatizado. Basta declarar que o Poupatempo é intocável.

Israel encrenca

O governo brasileiro ainda não concedeu o agrément ao diplomata Gali Dagab, pedido em janeiro. De Tel Aviv sopram rumores que essa demora pode se transformar numa nova lombada nas relações entre os dois países.

Quando um governo demora para conceder um agrément, isso significa que gostaria de receber outra indicação. Não se discutem os motivos, apenas aponta-se outro nome.

A África do Sul demorou para conceder o agrément do pastor Marcelo Crivella como embaixador brasileiro. Apesar de uma gestão impertinente do então presidente Jair Bolsonaro, o Brasil mandou outro nome. Encrenqueiro não é quem não dá agrément, é quem reclama.