No Brasil de 12 anos atrás, o governo Dilma Rousseff desfrutava de alta popularidade, e as emendas parlamentares ainda não tinham reconfigurado a dinâmica política entre congressistas e prefeituras. As ruas também não davam sinais da eclosão que aconteceria em junho de 2013 e transformaria o debate nacional. Com as urnas fechadas, PT, PDT, PSB, PCdoB e PSOL fizeram juntos 1.468 prefeitos, a maior parte pelos petistas. Na semana passada, foram 724. O montante é menor do que o que PSD, campeão de prefeituras, conquistou sozinho: 878.
“Houve um erro de leitura, como se a vitória do Lula fosse uma revanche do PT. Não foi. Muitos eleitores do Lula são conservadores”, afirma o jornalista Thomas Traumann, ex-ministro da Secretaria de Comunicação e autor do livro “Biografia do Abismo”, sobre a polarização brasileira.
Thomas reforça que “o Lula é muito maior que a esquerda. Na eleição de São Paulo, isso fica claro com o percentual de transferência de votos dele para o Guilherme Boulos. Boa parte dos eleitores do Lula não se vê no Boulos”.
Novos anseios
Ao derrotar, com ares de frente ampla, um rejeitado Jair Bolsonaro (PL) há dois anos, parte da esquerda considerou que os valores caros a esse lado do espectro político haviam prevalecido, quando na verdade a sociedade permaneceu conservadora. Não se trata de uma “jabuticaba”, aponta Traumann, e sim de um fenômeno que o campo progressista enfrenta em vários países. No Reino Unido, os trabalhistas voltaram ao poder depois de 14 anos ao redirecionar o discurso para temas do dia a dia da população, deixando para trás uma fase marcada pelas pautas identitárias.
“Os partidos de esquerda não responderam a uma série de questões, como o novo mercado de trabalho ou como conseguir defender direitos das minorias sem que isso pareça ameaça aos valores de uma parcela da população”, avalia. “Agora que não tem mais o fantasma Bolsonaro, as coisas voltam mais ou menos ao normal, e todos os problemas que a esquerda enfrentou em 2016, 2018, 2020 e 2022, com exceção da vitória do Lula, voltam à tona”, complementa.
No caso do PT, até houve um aumento no número de prefeituras de quatro anos para cá, mas muito tímido: de 183 para 248. Também não foram conquistadas capitais, e a aposta está agora nas quatro eleições com segundo turno que o partido ainda disputa em Fortaleza, Goiânia, Natal e Porto Alegre.
As eleições municipais de domingo passado tiveram índice recorde de reeleição: 81%. Reflexo, em parte, da bonança de prefeituras irrigadas por emendas parlamentares. Se a eleição de 2020 já havia sido desfavorável à esquerda, a deste ano foi de manutenção do que já está posto — e a esquerda quase não faz parte desse cenário.
Em outra frente, com a entrada em cena de pautas alheias às que costumam conduzir eleições majoritárias, os partidos se encontram numa encruzilhada. A direita se sai melhor quando a polarização é alimentada, dada a ressonância de ideias conservadoras no eleitorado. É mais nas demandas “reais” da população, e menos na ideologia, que a esquerda deveria se concentrar, avalia o fundador do instituto Locomotiva, Renato Meirelles.
Diante de um Brasil que passou a alimentar valores empreendedores, com mudanças nas relações de trabalho, criou-se um descompasso entre os partidos progressistas e a população, um caldo cultural também temperado pelas igrejas neopentecostais.
Se os caminhos passam por aí, o partido do presidente Lula tem um exemplo bem-sucedido em Contagem, Região Metropolitana de Minas Gerais. É de lá a prefeita petista que mais governa pessoas no País, Marília Campos, que assumiu o posto depois que o partido, em 2020, ficou sem capitais pela primeira vez na história. Agora, Marília foi reeleita em primeiro turno com 60%, apesar de Bolsonaro ter vencido Lula por mais de dez pontos de diferença na cidade em 2022.
Psicóloga, a prefeita ajudou a fundar o partido na região, mas hoje não poupa críticas à forma como a sigla tem se comportado
Vencedora com uma aliança que reuniu 14 partidos, Marília diz que chegou a registrar 80% de avaliação positiva na prefeitura e que, se fosse de um partido de centro, possivelmente converteria todo esse percentual em votos. Como é petista, mesmo parte de quem vê a gestão com bons olhos não quis apertar o 13.
A fim de sair da encruzilhada, a prefeita prega um discurso mais “municipalista” e “universalista” à legenda.
“O PT tem hoje uma predominância do discurso identitário, que faz com que dispute apenas uma bolha. É pouco universal. Diria também que, como não faz um discurso universal, que dispute o cidadão comum com seus problemas no transporte, na saúde, no território onde vive, o partido faz esse voto ser disputado ou pelo centro ou ficar muito refém dos votos conservadores, das igrejas”, afirma a eleita.
Do O GLOBO
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