Por Maurício Rands*
Toda responsabilidade é inicialmente individual. Mas, como mostra Freud em seu “Psicologia das massas e análise do eu”, os indivíduos podem ter mudanças comportamentais quando participam de uma coletividade. Por isso, o golpismo atávico das nossas Forças Armadas não se limita aos 37 indiciados nas 884 páginas do inquérito da Polícia Federal. Esses são apenas os principais articuladores, planejadores e executores de atos golpistas proibidos pelo art. 359, “l” e “m”, do Código Penal. Muitos outros oficiais, suboficiais, praças e familiares sonhavam com uma intervenção militar para cancelar a vontade do povo manifestada nas urnas em 2022.
O inquérito revelou os nexos entre fatos que antes eram fotografias de alguns momentos. Agora temos o filme completo. Um filme que diz muito de uma cultura golpista que começou com a quartelada de militares positivistas que proclamaram a república em 1889. Julgavam-se no direito de tutelar a nação. Tão autoritários quanto dom Pedro I e seu poder moderador da Constituição de 1824. Pretensões de tutela a cada passo da história de uma república manietada e sempre sujeita a intervenções golpistas. Bem ou malsucedidas.
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Assim foi com o tenentismo, o Estado Novo, o golpe em Vargas, as tentativas de impedir a posse de Juscelino, a deposição de Goulart em 64 e o governo Bolsonaro. A novidade da pregação golpista recente foi a utilização da comunicação digital para disseminar teses falsas sobre a lisura das urnas eletrônicas e sobre a “parcialidade” das instituições públicas e do jornalismo profissional. Assim dando tração ao golpismo alimentado pelo chefe desde a sua posse.
Está em curso uma estratégia de distinguir a instituição dos indivíduos que a integram. Como se a instituição não reproduzisse uma certa cultura. O problema é que essa cultura golpista transcende os 37 indiciados. Uma parte expressiva dos integrantes das nossas FFAA queriam o golpe. Muitos foram aos acampamentos em frente dos quartéis país afora, inclusive ao QG do Exército em BSB. A direita brasileira, sempre forte no meio militar, não tem um histórico de respeito à democracia. Nunca teve pruridos em participar ou aderir a movimentos golpistas. E a apoiar ditaduras que prenderam, torturaram e exilaram seus opositores. Depois da Constituição de 1988, que fincou as bases para um Estado Democrático de Direito, esperava-se que esse viés golpista fosse superado. Não foi o que se viu em 2018 e, depois, em 2022.
Algumas mudanças fazem-se urgentes. Uma reforma do art. 142 da CF/88, em passo duplo. Primeiro, para limitar as atribuições dos militares à defesa da soberania nacional. Uma redação que não permitisse interpretações golpistas poderia ser a seguinte: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria e sua soberania”. Ponto. Sem as contemporizações da parte final da atual redação. O segundo passo seria proibir que os militares ocupem cargos políticos ou administrativos nos órgãos e poderes civis. Sejam cargos permanentes, temporários de confiança, ou eletivos. Para, assim, afastá-los da políticização. Já vencidos dois anos do atual governo, ainda são 2.760 os militares ocupantes de cargos na administração pública civil (chegaram a 6.175 no governo do ex-capitão). Para isso, estão autorizados pelo art. 142, § 3º, II e III, da CF. Embora, os militares da ativa não possam se filiar a partidos políticos (CF, art, 142, §3º, V), eles podem se candidatar por força do art. 14, § 8º. Bastaria que o Congresso aprovasse uma emenda que: (i) determinasse a perda do posto ao militar que tomasse posse em cargo ou emprego público civil permanente ou temporário, permitida apenas a contagem do tempo de serviço militar para a aposentação pelo regime de previdência civil, reformando-se os incisos II e III do art. 142, § 3º; e, (ii) proibisse a candidatura de militar a cargo eletivo, revogando-se o art. 14, § 8º, CF.
Além dessa reforma da CF/88, uma outra medida profilática seria a revisão do conteúdo do que é ensinado nas academias militares. A formação dos seus membros não pode continuar como está. Ao lado do aprofundamento das capacidades técnicas, de gestão e de comunicação, já passou a hora de fomentar a crítica aos muitos desvios golpistas da história das FFAA. As novas gerações de militares precisam ser formadas com uma visão democrática e crítica aos desvios do passado. A elas precisam ser apresentados os valores democráticos, o respeito às instituições republicanas e os objetivos fundamentais da república do art. 3º da CF: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
*Advogado formado pela FDR da UFPE, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford
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