O Sertão que nasci, vivi e nele minha alma ficou impregnada tem muito do mundo imaginário traçado pela pena de Guimarães Rosa. Tem também as dores manifestas de Graciliano Ramos em Vidas Secas, sobretudo na cachorra Baleia, da família do retirante Fabiano, apresentada de forma mais humanizada do que os próprios humanos da história.
Meu Sertão que vivi está também e, principalmente, no O Quinze, de Rachel de Queiroz, cujo mundo transportado para nós foi rabiscado à sombra do Juazeiro, sob os acordes da Asa Branca, no encosto do carro de boi. Meu Sertão também está presente em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, considerado um dos mais importantes textos da literatura brasileira.
Leia maisUm Sertão recriado entre vaqueiros no transporte de uma boiada. Guimarães sentiu o que senti garoto no mundo todo próprio de terras e vidas secas, que nos ensina que o correr da vida embrulha tudo. Lá, ele descobriu o sentido de viver: “A vida é assim, esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
O Sertão foi povoado pelos portugueses. Firmaram cidades e vilas, plantaram canaviais, extraíram metais preciosos, criaram gado. Chegaram impunhando a autoridade do rei, difundiram a fé cristã e transformaram índios e negros africanos em escravos.
Meu Sertão é ainda o Sertão das escritas e vivências de Euclides da Cunha. Em Os sertões, ele criou uma imagem de Canudos como cidade iletrada, dominada por fanatismos e superstições transmitidos de forma oral. Gustavo Barroso, imortal da Academia Brasileira de Letras, foi fundo na nossa história.
Descobriu que a palavra portuguesa ‘sertão’ nada mais é do que a abreviatura de “desertão”, um deserto grande, apelativo dado pelos portugueses às regiões despovoadas e híspides da África Equatorial. Vidas Secas, sempre o velho Graça de volta, é um profundo retrato da sociedade brasileira, sobretudo de seus problemas sociais.
Graciliano traça uma crítica social retratando as dificuldades encontradas por uma família pobre de retirantes, convivendo com a miséria e a seca. Na forçosa travessia em busca de uma vida sem seca, Graciliano imaginou a família retirante chegando a uma Canaã, uma terra prometida, uma terra distante, para passar a borracha no que deixaram para trás, a caatinga, com seus montes baixos, cascalho, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo.
Eu viajo nos textos que falam das minhas origens para conseguir ter a exata compreensão de tudo ao meu redor. O velho Graça dizia que quem escreve deve ter todo o cuidado para a coisa não sair molhada. “Da página que foi escrita não deve pingar nenhuma palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal”, nos ensinou. Que sabedoria!
Como falar de Sertão sem viajar também nos escritos de José de Alencar. “Quem pela primeira vez percorre o sertão nessa quadra, depois de longa seca, sente confranger-se-lhe a alma até os últimos refolhos em face dessa inanição da vida, desse imenso holocausto da terra”, escreveu na obra O Sertanejo.
Não há nada mais triste do que toda a obra dos famosos sobre o Sertão, porque a fome está presente em todas como a nos dar um soco no estômago. Em O Quinze, retrato doloroso dessa situação, Rachel de Queiroz diz que fome demais tira o juízo.
“E se não fosse uma raiz de mucunã arrancada aqui e além, ou alguma batata-branca que a seca ensina a comer, teriam ficado todos pelo caminho, nessas estradas de barro ruivo, semeado de pedras, por onde eles trotavam trôpegos se arrastando e gemendo”, narra ela em sua comovente obra-prima.
Em Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto também fala de dores, das minhas, de Rachel, Graciliano, Euclides, José de Alencar, cujo trecho reservei para o fim:
Morte que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
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