Como tem feito nos últimos meses, Múcio repetiu que as Forças Armadas não queriam dar nenhum golpe, embora admita que “algumas pessoas ali de dentro” torcessem por isso.
“Eu não estou protegendo nada, mas não quero condenar inocentes. Quero punir culpados”, afirmou ele, pouco antes de sair, apressado, para o primeiro almoço de 2024 com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Na manhã desta sexta-feira (5), Múcio se reuniu com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio da Alvorada. O ministro diz que, atualmente, as relações de Lula com as Forças Armadas estão pacificadas. “O presidente, hoje, tem uma relação estreita com os comandantes. São próximos, se telefonam, resolvem as coisas de forma direta. Não precisam mais de intermediário”, assegura.
O governo vai fazer um ato para marcar um ano da tentativa de golpe em 8 de janeiro e comemorar a vitória da democracia. Mas aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro prometem organizar protestos. O senhor não teme novos ataques?
O verbo não é temer. Eu torço para que nada aconteça. Não acredito que nada será como foi o dia 8 de janeiro de 2023. Nós tivemos uma posse magnífica do presidente Lula no dia 1º. Acho que aquele sucesso nos contaminou e fez com que a gente relaxasse no dia 8, achando que estava tudo pacificado. Hoje, a gente não teria mais aquele ímpeto de relaxar. Não vai acontecer nunca mais aquilo. Ficamos sempre de orelha em pé.
O senhor propôs, à época, que o presidente Lula recorresse a um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e foi muito criticado. Como contornou aquela situação?
Eu não propus, embora não ache que teria havido problema. O presidente disse assim: “É bom botar o Exército na rua”. Alguém atrás de mim falou: “O Exército só pode ir para a rua com GLO”. Aí o presidente respondeu: “Com GLO, não!”. Algumas pessoas achavam que a GLO daria condições a quem queria dar um golpe. Mas eu defendo a tese de que quem quer dar golpe não precisa de GLO. Golpe não tem regra. O golpista é um infrator.
Imagens do circuito interno do Palácio do Planalto mostram o ministro da Justiça, Flávio Dino, hoje prestes a assumir uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, discutindo com o senhor. O que ele disse?
Nós não estávamos discutindo. Quem estava ali eram os ministros Rui Costa (Casa Civil), Waldez Góes (Integração), o senador Randolfe Rodrigues (líder do governo no Congresso) e eu. Flávio Dino estava dizendo para nós que tinha de punir, tinha de prender. Durante a explanação que fazia, ele balançava os braços, mas não era para mim. Não sou de briga.
O senhor chegou a dizer que os acampamentos de bolsonaristas em frente aos quartéis eram manifestações democráticas. Não era possível prever ali um risco iminente de ataque?
Não. Até o dia 8 de janeiro eram manifestações democráticas, tanto que em momento nenhum a Justiça mandou tirar as pessoas de lá. Foi muito melhor eu dizer que tinha parentes bolsonaristas nos acampamentos do Recife do que mentir e dizer que não tinha. Em Brasília também havia familiares de gente do Exército. Acho até que aquilo foi a forma encontrada pelo Exército para conviver com as partes contrárias que havia intramuros. Eu admito que havia algumas pessoas ali de dentro que torciam pelo golpe. Mas a instituição, o Exército, não queria o golpe.
E quem queria o golpe?
Sei de muita gente que desejava, mas não apareceu o líder. No momento em que o então presidente da República (Jair Bolsonaro) tomou um avião e foi embora, ficou todo mundo órfão.
O tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, disse à Polícia Federal que o então presidente se reuniu com a cúpula das Forças Armadas, após ter perdido as eleições, e discutiu detalhes de um plano para tomar o poder. O senhor falou com Mauro Cid?
Eu nunca falei com Mauro Cid. Toda a investigação é presidida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Não tive acesso nem às pessoas com as quais o hacker (Walter Delgatti Neto) disse ter falado no Ministério da Defesa. Eu solicitei por escrito e não obtive.
Qual foi o momento mais difícil naquele 8 de janeiro?
O mais difícil foi que nós amanhecemos no dia 9 sob a égide da suspeição e contrariando todos os lados. A esquerda, contrariada, porque achava que as Forças Armadas tinham interesse no golpe. E a direita muito zangada, porque as Forças Armadas não deram o golpe. Eu não tinha nem com quem conversar.
E por que o comandante do Exército caiu, menos de duas semanas depois?
Se você me perguntar qual o dia mais importante, digo que foi o 21 de janeiro de 2023, um sábado, quando nós substituímos o comandante do Exército (general Júlio César de Arruda). Ele foi substituído porque o clima de confiança do presidente com o comando do Exército tinha acabado. Houve uma fratura.
Mas isso também ocorreu porque ele se recusou a cancelar a promoção de Mauro Cid como chefe do 1º Batalhão de Ações e Comandos, em Goiânia, não foi?
Com a perspectiva da promoção do Mauro Cid, a gente sentia que havia uma certa proteção. A substituição do comando do Exército foi um divisor de águas porque, a partir daí, mudou o rumo das coisas. Os três primeiros meses – janeiro, fevereiro e março – foram muito difíceis. O presidente estava machucado, cheio de suspeições, e as desconfianças só aumentavam. Graças a Deus, ao longo do ano, conseguimos construir a relação entre as partes.
O mal-estar entre o presidente e as Forças Armadas foi superado?
Sim. O presidente, hoje, tem uma relação estreita com os comandantes. São próximos, se telefonam, resolvem as coisas de forma direta. Não precisam mais de intermediário. Precisamos apenas achar os culpados para tirar de vez essa nuvem de desconfiança sobre as Forças Armadas.
O PT nunca teve boa relação com as Forças Armadas. Quando o senhor assumiu, qual foi o pedido que o presidente lhe fez?
Quando ele disse “Olha, Múcio, eu preciso que você vá para a Defesa”, eu não entendi, porque não sou homem ligado à área militar. Minha área sempre foi a política. Passei a entender depois, porque no governo anterior se misturou muito o militar e o político. Todos os ministérios estavam ocupados por militares da reserva. Ali havia um interesse na manutenção do status quo. Foi quando nós começamos a negociar para acabar com essa história de militar fazer política, ser candidato. Pode fazer fora de lá, não dentro das Forças Armadas. Foi a partir daí que se começou o trabalho de saneamento.
O senhor articulou uma PEC que proíbe militares de permanecer na ativa caso disputem eleições e se opôs à proposta do PT para mudar o artigo 142 da Constituição, distorcido por bolsonaristas que defendiam intervenção militar. Não dava para ter um acordo?
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Defesa, negociada com os militares, não é para se contrapor à que foi apresentada por deputados do PT e eu conversei com todos os autores. É para a gente consertar o daqui para a frente. O militar que vai ser candidato e perde a eleição volta para o quartel com todo proselitismo do político e nunca mais respeita hierarquia. Não é mais o mesmo. Então, o que nós acordamos com os comandos foi que todos que quisessem ser políticos saíssem de vez, se não tivessem o tempo necessário para passar à reserva.
Não são poucos os petistas que querem a sua saída do ministério. Como o senhor enfrenta essa hostilidade do PT?
O cargo é do presidente Lula. A decisão é dele e eu estar aqui, ou não, jamais vai interferir na nossa relação de afeto e amizade.
Quando houve a CPMI dos atos golpistas, o senhor tentou evitar a convocação de generais. Tinha algum receio?
Tínhamos a CPMI no Congresso e as investigações do ministro Alexandre Moraes (no Supremo Tribunal Federal). Ninguém está livre de ser investigado. Mas você conhece muito bem como são as CPIs. Ali tem um pouco da política, da emoção. Eu estava preocupado.
O senhor estava preocupado com a desmoralização das Forças Armadas?
De quem não tinha culpa. Naquele momento, para quem você apontasse já era culpado.
Então, o senhor queria blindar os militares…
Eu não estava querendo blindar. Estava querendo apenas que não houvesse uma desmoralização, uma provocação, porque a gente, quando mexe com um, está mexendo com não sei quantos. Não estou protegendo nada, mas não quero condenar inocentes. Quero punir culpados.
O deputado Lindbergh Farias (PT-RJ) diz que o senhor é o ministro da defesa dos militares. Como rebate isso?
Não rebato. Eu sou ministro do governo Lula e ao governo Lula interessa que os militares estejam pacificados. O mundo militar e o mundo político são completamente diferentes. O meu papel aqui é conciliar, pacificar. Eu sou o ministro do “deixa-disso”. A gente tem que fazer com que todo mundo toque o Brasil para frente.
O senhor sempre disse que os ataques golpistas são página virada. Não acha que essa página somente será virada depois da punição de todos, incluindo militares?
Principalmente os militares, no meu caso. A pior coisa do mundo é você trabalhar sob suspeição. Interessa às Forças Armadas legalistas que tudo seja absolutamente esclarecido e os culpados, punidos. Ninguém quer mais a punição do que as Forças Armadas.
Embora executores da tentativa de golpe tenham sido condenados, ainda não está claro quem foram os financiadores e os autores intelectuais desses atos…
Eu continuo achando que aquilo foi uma grande baderna. Um bando de vândalos que foi arrebanhado por empresários irresponsáveis, alguém pagou os ônibus (e disse): ‘Vamos para Brasília’.
Não é o que diz o ministro Alexandre de Moraes. Encontraram uma minuta do golpe na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e secretário da Segurança do Distrito Federal, e foram descobertas mensagens sobre isso no celular de Mauro Cid. Isso não é tentativa de golpe?
Olha, não foi por parte dos militares nem das instituições. Havia pessoas que desejavam o golpe, mas o Exército, a Marinha e Aeronáutica, não. Como são os golpes no mundo? Vai a Força e o povo vem apoiando atrás. Aqui, o povo foi na frente. Não tinha um líder. Se eles (Forças Armadas) quisessem golpe, era um conforto. Eu via daqui da janela (do Ministério da Defesa). Era gente correndo para todo canto. Não apareceu esse coordenador.
Se houver a participação da cúpula militar na montagem desse plano, o que será feito?
Se for comprovado, serão punidos.
O presidente Lula sempre disse que não haveria GLO, mas em 1º de novembro foi decretada essa operação em portos e aeroportos. Quem o convenceu a mudar de ideia?
Aquilo ali foi fruto de uma conversa de Flávio Dino, Ricardo Cappelli (secretário-executivo da Justiça), Rui Costa, eu e o presidente. Mostrou-se a ele a vantagem de nós criarmos um limite fictício nos portos e aeroportos do Rio, de São Paulo, para que as Forças Armadas pudessem contribuir com a sociedade civil, combatendo o crime organizado.
Leia menos