Tempos líquidos

*Por Marcelo Tognozzi

Foi Ana Cecília Aquino quem levantou a bola durante o almoço da Confraria Orlando Brito, reunida no restaurante Lake’s, em Brasília, um dia antes do primeiro turno. “O problema é a política líquida”, apontou ela. Líquida do ponto de vista de Zygmunt Bauman (1925-2017), o filósofo polonês autor de “Tempos Líquidos” e outras dezenas de obras, onde faz uma análise desta era da velocidade e da inconstância. Tudo passa tão rapidamente, nada é sólido e até o amor se liquefez na fugacidade das experiências. Mundo veloz. “A vida muda como a flor em fruto velozmente”, igual no poema de Ferreira Gullar.

As pesquisas eleitorais erraram feio, especialmente as do Ipec e Datafolha, porque negligenciaram líquidos e sólidos do pensamento de Bauman. Continuaram a fazer pesquisas como sempre fizeram, enquanto o mundo mudava em ritmo de fibra ótica. Nas suas sondagens privilegiaram respostas estimuladas, quando a realidade da urna eletrônica é a do voto espontâneo. Não há lista. Ou o eleitor vota com o que tem na cabeça ou na colinha, ou não vota. Simples assim. O voto na urna eletrônica é líquido, enquanto a pesquisa tenta registrar o que considera sólido. Claro que o resultado será sempre o de duas realidades diferentes.

Esta eleição teve duas características marcantes até aqui. A 1ª é o ineditismo de uma disputa entre um presidente e um ex-presidente. A 2ª é a o engajamento da grande mídia fazendo campanha contra o presidente Bolsonaro. As pesquisas do Datafolha e do Ipec acabaram indo para as manchetes. Com Lula praticamente eleito no 1º turno, os números destas empresas se transformaram em sólida narrativa contra o candidato presidente.

O engajamento precoce da mídia contra Bolsonaro acabou matando a 3ª via, simplesmente porque não deu a ela a chance de se desenvolver. Foram 2 anos só falando de Lula e Bolsonaro, tipo sorry periferia no melhor estilo Ibrahim Sued.

Mas havia uma política líquida fervilhando nas redes sociais e um voto underground não detectado, especialmente por quem teima em fazer pesquisa presencial, cara a cara com o eleitor que vota espontaneamente. Não é por acaso que as pesquisas por telefone conseguem uma precisão maior.

Quem não entrou numa igreja evangélica, pequena ou grande, quem não ouviu a pregação dos pastores e testemunhou a reação dos fiéis, não poderia detectar isso. Até porque eles não aceitariam conversar com entrevistador do Datafolha ou Ipec, percebidos como adversários do seu candidato.

Em 2013 participei do livro “Junho de 2013: a sociedade enfrenta o Estado”, organizado pelo cientista político Rubens Figueiredo. A obra reuniu diversos autores dispostos a entender o movimento das ruas, o papel dos influencers digitais e a falta de controle dos políticos sobre uma ação com comando horizontal. Aquilo era a política liquida em estado puro pela primeira vez no Brasil.

Brotava naturalmente a partir das redes sociais e se retroalimentava nelas. Até que foi minguando nas ruas e dentro destas próprias redes, se liquefazendo, escorrendo pelos dedos e se transformando em outra coisa. Foi neste 2013 que o PT perdeu as ruas e nunca mais recuperou. Não compreendeu a diferença entre líquido e sólido, nem porque 20 centavos eram capazes de gerar tanta confusão.

É preciso entender como o eleitor evoluiu nos últimos 35 anos, como explica a pesquisadora Miriam Braga, especialista em pesquisas qualitativas. No fim dos anos 1980, início da década de 1990, o eleitor, especialmente o de baixa renda, votava movido por compromisso com o candidato. Era um voto apalavrado.

Na virada do século, o eleitor votava por oportunismo, porque ganhou algo em troca. Depois, passou a votar em quem dava mais. Algumas eleições adiante e o eleitor não recusava benefício de ninguém, mas passou a votar em quem ele quer.

Agora, o eleitor vota em quem ele vê com mais condições de ajudá-lo a melhorar de vida. Não interessa se é Lula ou Bolsonaro. A necessidade fala mais alto que qualquer ideologia. Mas este eleitor individualista é muito suscetível às redes sociais. Como anotou Bauman, o centro de gravidade da atual forma de vida já não é mais o coletivo, mas sim o individual. O sujeito vota por ele, não pelos outros.

Faltando uns 15 dias para o 1º turno, meu amigo Márcio Pereira dono da paulista Orbis, ligou para contar que o astronauta Marcos Pontes dava sinais claros de crescimento. Tarcísio de Freitas empinava junto. E Bolsonaro passara Lula. Márcio não fez pesquisas registradas no Tribunal Eleitoral, suas sondagens eram para consumo interno. Outras pesquisas também mostravam um crescimento do astronauta, mas não tão intenso. Era óbvio que, se Tarcísio e o Astronauta cresciam, Bolsonaro também iria junto.

O resultado em São Paulo, pelo menos para nós 2, não foi surpresa. Profissional experiente, Márcio Pereira entende o que vai pela cabeça do eleitor do interior paulista, integrante da maioria decisiva para eleger o governador. Bastava cruzar aqueles resultados com as redes sociais e… bingo! O sólido se misturava com o líquido confirmando a vitória do bolsonarismo.

Grande parte dos eleitores do Sudeste e do Sul votou rejeitando a campanha da grande mídia contra Bolsonaro. Não foi apenas um voto contra o PT. Foi um voto contra um jornalismo engajado e parcial dado por eleitores sem relação com o bolsonarismo ou maior interesse pela política. Eles simplesmente não concordavam com aquilo.

Passamos a semana assistindo Lula e Bolsonaro receberem apoios. Tenho o maior respeito por Edmar Bacha, Arminio Fraga, Pérsio Arida e Pedro Malan. Mas ainda não descobri quantos votos eles agregam à campanha de Lula. Quantos votos virão com Simone Tebet ou o velho PDT de um Ciro Gomes magoado, porque são incontroláveis os eleitores.

Bolsonaro recebeu apoio dos governadores Romeu Zema, Ratinho e Claudio Castro, eleitos no 1º turno, e de JHC, prefeito de Maceió campeão de votos em Alagoas. Estes têm algo a oferecer ao eleitor, podem mudar a vida dele para melhor. Nada mal para quem terminou o 1º turno em 2º lugar.

Esta campanha eleitoral caminha para sua reta final cada vez mais deferente de todas as outras. A mesma relação líquida que a mídia manteve com a Lava Jato, a qual escorreu, fluiu, agora tem com Lula. As duas mais badaladas empresas de pesquisas não foram capazes de entrar no Brasil profundo, liquefazendo sua credibilidade. Acreditar em Datafolha e Ipec virou coisa da finada velhinha de Taubaté.

Eu fico por aqui com Jânio Quadros, o político que mais entendeu de líquidos. Especialmente aquele uisquinho de cada dia. Assim explicava ele seu caso de amor pelo elemento liquefeito: “Bebo porque é líquido. Se fosse sólido, comê-lo-ia”.

*Jornalista

Câmara e Senado bolsonaristas

A Câmara dos Deputados será formada na próxima legislatura, em sua maioria, por deputados que compõem o Centrão ou são filiados a partidos de centro-direita. Dos 513 eleitos, 273 integram esse bloco político, enquanto o PT e os partidos da esquerda conseguiram 138 cadeiras.

Segundo levantamento do site Poder360, o PL elegeu 99 deputados em 2 de outubro de 2022. Com o resultado, a sigla do presidente Jair Bolsonaro (PL) passará a ter a maior bancada da Câmara a partir de 2023. É o maior número de eleitos por um partido na Casa Baixa desde 1998. Na sequência, aparece a federação PT/PV/PCdoB, com 80 congressistas e o União Brasil, com 59.

Mais da metade dos eleitos corresponde a deputados que conseguiram se reeleger. São 227 novos eleitos em 2022. Com esse resultado, a taxa de renovação da Câmara foi de 44,24% em 2022, a segunda menor desde 1998. Há quatro anos, esse percentual havia sido de 46,6%. Embora a taxa de renovação tenha sido menor, o número de deputados que se declaram negros eleitos em 2022 subiu para 135.

É uma alta de 26% em relação a 2018. A bancada feminina da Câmara também terá mais representantes a partir de 2023. Serão 91 deputadas na Casa Baixa, o equivalente a 18% das cadeiras. Em 2018, elas representavam 15% dos eleitos. Já no Senado, a maior bancada será do PL, que terá 13 representantes. Na sequência, está o União Brasil, com 12 senadores. MDB e PSD terão 10 senadores cada um.

Das 27 cadeiras disponíveis no Senado, só 5 serão ocupadas por senadores reeleitos. Ao todo, 13 congressistas tentaram renovar seus mandatos por mais 8 anos. O resultado do 1° turno mostrou que o presidente Jair Bolsonaro (PL) conseguiu uma base robusta de apoiadores no Senado. Dos 27 eleitos, 14 são apoiados pelo chefe do Executivo, enquanto 8 são apoiados pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Negritude – Entre os eleitos no Senado, seis são negros. Eles se juntarão aos 14 senadores em meio de mandato que se autodeclaram pretos ou pardos em 2018. Com isso, representarão 25% da Casa Alta a partir de 2023. Já a bancada feminina permanecerá a mesma em 2023. Serão 14 senadoras -10 em meio de mandato e quatro eleitas em 2022. Outras quatro congressistas da Casa terminarão seus mandatos em 2022.

Joice reprovada – Candidatos que se elegeram na onda bolsonarista de 2018 ou integraram o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) e depois romperam com o chefe do Planalto não conseguiram se eleger. Deputada federal mais votada em São Paulo há quatro anos, com mais de 1 milhão de votos, a jornalista Joice Hasselmann (PSDB) obteve pouco mais de 13 mil votos e ficou longe da reeleição. O mesmo destino teve o deputado federal Alexandre Frota (PSDB), que passou dos mais de 155 mil votos em 2018 para 24 mil agora, insuficientes para a eleição como deputado estadual em São Paulo.

Mandetta dançou – Crítico do presidente Bolsonaro desde a pandemia, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (União Brasil) perdeu a disputa ao Senado por Mato Grosso do Sul para Tereza Cristina, ex-titular da Agricultura. Já o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, que passou a fazer críticas públicas ao ex-chefe neste ano, fracassou na tentativa de se eleger deputado federal por São Paulo.

Empate na urna – Na pesquisa PoderData, realizada entre 3 a 5 de outubro, Lula (PT) e Bolsonaro (PL) empatam numericamente entre os eleitores que dão certeza de que vão sair de casa para votar no 2º turno. Neste público, o petista e o atual presidente marcam 47% dos votos, enquanto 5% votariam em branco ou nulo. Outros 2% não souberam responder. Lula, no entanto, se beneficia se a eleição incluir os que hoje estão incertos do próprio comparecimento nas urnas. No grupo dos que acham que podem votar, mas não têm certeza (5% do total de eleitores), o petista tem 64% das intenções de voto.

Frota só teve 24 mil votos – Eleito deputado federal pelo PSL em 2018 com mais de 155 mil votos, Alexandre Frota (PSDB) dessa vez recebeu 24.224 votos, insuficientes para assumir uma cadeira na Assembleia Legislativa de São Paulo. Frota foi um dos primeiros parlamentares a deixar a base de Bolsonaro – ele foi expulso da sigla, da qual Bolsonaro fazia parte, em agosto de 2019, depois de criticar a gestão do presidente. Também criticou a indicação de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Em 2020, Frota chegou a fornecer à Polícia Federal informações obtidas pela CPMI das Fake News que ligariam Eduardo ao esquema.

CURTAS

PANDEMIA 1 – No primeiro turno das eleições, o presidente Jair Bolsonaro (PL) venceu em 87% das cidades com mais mortes proporcionais causadas pela pandemia de Covid-19, enquanto Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT, ficou à frente em 13% delas, o que revela que a pandemia não foi fator influente.

PANDEMIA 2 – Com pouco mais de 160 mil habitantes, São Caetano do Sul (SP) registrou o maior índice de mortalidade dentro do recorte definido, com 707 óbitos por 100 mil habitantes. No município, Bolsonaro venceu com 57.617 dos votos (50,33%), enquanto Lula conquistou 38.172 (33,34%)

Perguntar não ofende: A baixaria na propaganda eleitoral de volta ontem vai mudar a cabeça do eleitor?