Por Maurício Rands*
Dia desses tive um sonho estranho. Ou melhor, um tormento. Um devaneio triste, mas, receio, muito real. Era um angustioso festival na periferia de uma grande cidade brasileira. A mestre de cerimônia franqueava o microfone, num tablado de madeira (ou era num chão empoeirado e lamacento de terra batida?). Que cada um dos presentes viesse à ribalta para recitar uma estrofe que falasse do seu torrão natal.
“Lá de onde eu venho”, arriscou-se um adolescente preto, “chove muito, mas não nos sentimos aliviados do calor nosso de cada dia; nem nos alegramos; porque quase sempre ficamos sabendo de um barraco deslizando ou de alguém que não pôde sair de casa porque sua rua estava alagada”.
Leia mais“Lá de onde eu venho”, indigna-se uma jovem mãe da favela, “chove muito, mas não é do bom líquido; a chuva que lá tem de montão é a de chumbo enviado pelos ‘home’; é de balas perdidas, mas que não são cegas. Porque elas enxergam muito. Têm uma vista apurada para enxergar melhor os de cor preta, jovens e crianças como o meu guri, que um dia, de repente, sumiu e depois só voltei a vê-lo na foto do jornal, estampado. Como na música de Chico: ‘Com venda nos olhos/ legenda e as iniciais/Eu não entendo essa gente, seu moço/Fazendo alvoroço demais/O guri no mato, acho que tá rindo/Acho que tá lindo de papo pro ar’.
“Lá de onde eu venho”, fala uma menina bonita, “a gente sabe que não é bom se maquiar e botar um vestido bonito; nem ficar muito tempo no poste de ônibus; pois, do nada, sempre aparece algum ser estranho que imagina poder ter prazer pela força bruta da ameaça de um canivete ou de um ‘berro’”.
“Lá de onde eu venho”, arrisca o adolescente magrinho de óculos fundo de garrafa, “o barulho não permite que eu faça meu dever de casa ou leia o livro que a professora passou; cada vizinho acha que só importa a música dele”.
“Lá de onde eu venho”, diz um ancião precoce, “todo mundo tem medo de envelhecer; parece que é feio; ou vergonhoso; andar nas calçadas é um terror; se adoecemos, já sabemos que a fila do hospital vai ser um pavor; pior até do que a causa da dor, quem sabe”.
”Lá de onde eu venho”, dizem todos, o próximo, o próximo, e mais uma. “Lá de onde eu venho, minha vida nunca foi um palco iluminado, nunca pude imaginar que a ventura desta vida fosse a cabrocha, o luar e o violão; nem que o meu morro fosse parte de uma terra que teve palmeiras, onde cantou o sabiá, nem cujo céu teve mais estrelas, nem nossas vidas mais amores. Nossas várzeas têm poucas flores, nossas vidas mais amores perdidos. Alguns porque se tornaram alvos do projétil que não é cego; ou de um vírus ou bactéria que não mata quem tem plano de saúde; outros porque, sem eira, nem beira, foram levados à velhice e à doença precoces; ou ao vício causado pelo desalento”.
*Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
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