Os defensores do projeto insistem em um ponto: o texto endurece a regra de progressão para quem exerce comando de facção ou constitui milícia, exigindo o cumprimento de ao menos 50% da pena, em vez dos 40% hoje aplicados em crimes hediondos sem morte. É verdade. O inciso VI do novo artigo 112 da Lei de Execução Penal fixa esse patamar para o comando de organização criminosa estruturada para crime hediondo, e o inciso VII faz o mesmo para a constituição de milícia privada. Mas essa vitrine de rigor esconde o movimento de fundo: o mesmo artigo 112 volta a consagrar a progressão após 1/6 da pena como regra geral – e, pior, expande esse benefício para crimes cometidos com violência ou grave ameaça que não se enquadrem como hediondos nem como crimes contra a vida ou o patrimônio.
Na prática, uma série de delitos frequentemente associados à atuação de organizações criminosas – como exploração sexual, certos crimes econômicos, corrupção em licitações e outras condutas previstas fora dos títulos de vida e patrimônio – passam a exigir menos tempo em regime fechado para progressão. São justamente esses delitos periféricos que, somados, alimentam o caixa e o poder territorial de facções e milícias. Ou seja: ao mesmo tempo em que o Congresso aprova um marco legal de combate ao crime organizado, com penas mais duras e percentuais mais altos para progressão em crimes hediondos e para chefes de organizações, o PL da dosimetria puxa o sistema para o lado oposto em uma parte relevante do Código Penal.
O risco de beneficiar, direta ou indiretamente, integrantes de organizações criminosas não é retórico. Ele decorre de três movimentos combinados:
- Redução estrutural do tempo em regime fechado
O relatório da Câmara deixa claro: o objetivo foi “retomar consagrada redação quanto ao tempo necessário para progressão de regime”, aplicando o patamar de 1/6 de cumprimento inclusive para crimes com violência ou grave ameaça, salvo algumas exceções. Para crimes não hediondos, mas graves – como determinados delitos econômicos, contra a administração ou ligados à exploração de pessoas – isso significa menos tempo na prisão antes do semiaberto. É um presente também para o braço financeiro de facções e milícias.
- Remição de pena em prisão domiciliar
A alteração do artigo 126 da LEP deixa expresso que o condenado em regime domiciliar poderá remir pena por trabalho ou estudo. A prática já vinha sendo admitida por decisões do STJ em casos específicos; agora, ganha chancela legal ampla. Em tese, é um avanço civilizatório. Na prática, em um país com enorme déficit de fiscalização e monitoramento eletrônico, abre espaço para que condenados vinculados a organizações criminosas acelerem o fim da pena fora do presídio, em ambiente em que o controle estatal é muito mais frágil.
- Retroatividade da lei penal mais benéfica
As mudanças foram desenhadas para retroagir. Isso significa que condenados por crimes graves – inclusive integrantes de organizações criminosas que não se enquadrem na faixa mais dura de hediondos com morte ou comando formal de facção – poderão pedir recontagem de penas, progressões antecipadas e conversão de regime.
A combinação desses elementos cria uma janela de oportunidade para a atuação em cadeia de advogados de facção: uma lei aprovada sob o pretexto de corrigir “excessos” no 8 de janeiro passa a ser argumento para soltar antes da hora quem lucra com o crime organizado. O PL foi pensado para atingir um núcleo bem específico: os condenados pelo golpe de Estado e pela abolição violenta do Estado Democrático de Direito. A unificação das penas desses crimes, em concurso formal, reduz de forma drástica o total a ser cumprido por Bolsonaro e outros réus de alto escalão – cálculos divulgados apontam cenário de pouco mais de dois anos de regime fechado em vez de mais de sete. Só que a lei não é cirúrgica. Ao mexer no Código Penal e na Lei de Execução Penal, o Congresso recalibra o sistema inteiro. As mesmas regras que hoje são apresentadas como gesto de “reconciliação” com uma parcela dos golpistas poderão ser invocadas por réus de crimes violentos e por integrantes da engrenagem de facções e milícias.
Esse efeito colateral é particularmente grave num país em que o próprio governo calcula a existência de dezenas de facções e milícias atuando no território nacional, algumas com alcance transnacional. Não é trivial afrouxar as engrenagens da execução penal justamente quando se tenta estrangular o poder econômico e territorial dessas organizações.
A contradição política é evidente. De um lado, o Executivo envia ao Congresso projetos que criam o tipo penal de facção criminosa, ampliam penas, agravam circunstâncias qualificadoras e fortalecem a investigação patrimonial e a cooperação internacional. De outro, a Câmara aprova, em votação tensa e acelerada, um texto que:
- reduz a soma de penas de crimes contra a democracia, ao impedir o acúmulo de tentativas de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito;
- amplia o alcance da progressão de 1/6, inclusive para crimes com violência ou grave ameaça que ficavam em uma faixa intermediária de rigor;
- clareia e consolida a remição em regime domiciliar, sem propor contrapartidas robustas de fiscalização.
É um recado confuso: endurecer na vitrine (“comando de facção”, “milícia privada”), mas abrir atalhos no miolo da legislação penal – justamente onde as organizações criminosas se sofisticam, lavam dinheiro, capturam contratos e exploram populações vulneráveis. Há ainda um efeito político-jurídico que não pode ser ignorado.
Ao introduzir conceitos abertos como “mesmo contexto” e “multidão” e ao selecionar, por lei, o tipo de concurso de crimes a ser aplicado pelo juiz, o Congresso cria um terreno fértil para disputas intermináveis de interpretação.
Essa ambiguidade interessa a quem tem estrutura para litigar sem prazo: grandes escritórios criminalistas, réus com poder econômico e, naturalmente, cúpulas de organizações criminosas. Cada brecha semântica vira um novo caminho recursal; cada regra retroativa, um novo pedido de revisão. Quando o alvo aparente é um grupo politicamente identificado – os golpistas de 8/1 –, mas o efeito normativo respinga em todo o sistema, a sensação de “virada de mesa” não se limita à política. Ela alcança a segurança pública e o combate ao crime organizado.
Defender o Estado Democrático de Direito não é apenas punir exemplarmente quem tentou derrubar as instituições. Também é garantir que o país não se torne mais vulnerável a facções, milícias e organizações criminosas que se alimentam da fragilidade do sistema penal. Ao aprovar o PL da dosimetria, a Câmara optou por uma solução aparentemente intermediária entre anistia ampla e manutenção integral das penas definidas pelo STF. Mas, ao fazer isso, mexeu em pilares da execução penal que vão muito além do 8 de janeiro.
O Senado terá agora a oportunidade – e a responsabilidade – de corrigir essa rota. Não se trata de blindar um ex-presidente ou de manter inimigos políticos atrás das grades a qualquer custo. Trata-se de uma pergunta mais simples e objetiva: Faz sentido, em plena expansão do crime organizado, aprovar uma lei que pode encurtar a prisão ou até impedir o encarceramento de integrantes de organizações criminosas (tenham elas atuação política ou não)?
Se a resposta for não, o caminho é claro: revisar o texto, separar o que diz respeito ao 8 de janeiro do que impacta o resto do sistema penal e fechar, em vez de alargar, as brechas que hoje interessam tanto aos golpistas quanto às facções.
*Empresário, coordenador-geral estadual do Instituto Afro Origem
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