Por Flávio Chaves*
A madrugada é uma carta assinada em branco. Uma folha onde a alma, embriagada, escreve sem pudor os seus segredos mais densos. Não há regras, gramática ou coerência. Há apenas a confissão nua de quem ama demais e não sabe mais se é noite no mundo ou dentro de si.
E eu me entrego a ela. Sem hora, sem medo, sem desculpa.
Enquanto a cidade cochila com seus postes acesos como cílios de um rosto cansado, eu acordo em mim mesmo. Caminho rumo ao bar como quem volta para casa. A boemia é minha religião, e o balcão, meu altar. Cada gole de vinho é uma tentativa de afogar a ausência dela. Mas ela nada bem. Nada nos meus olhos, nos meus dedos, no meu silêncio.
Leia maisA radiola de ficha, velha companheira, gira lentamente. Toca “O Último Beijo” como se soubesse de cor a partitura do meu coração. O garçom já nem pergunta mais. Apenas serve — como quem compreende que há dores que não precisam de conversa, apenas de um copo cheio.
O bar é o meu paraíso de desterrado. Ali sou rei de um império perdido, onde a única súdita que me importa desertou sem aviso. Deixou um perfume na memória e um beijo suspenso no tempo. Às vezes danço sozinho entre as mesas vazias, como se ainda a visse sorrindo ao canto, com os cabelos soltos e os olhos dizendo tudo que sua boca não ousava.
Não sei mais se sou eu que amanheço… ou se é o dia que amanhece em mim, por causa da falta que ela me faz. A aurora chega como uma visita indesejada, batendo à porta com os dedos frios da lucidez. Mas ainda não abro. Prefiro o escuro da saudade, esse lugar onde ainda posso vê-la nitidamente, como se não tivesse partido nunca.
A madrugada me pertence. É o meu país. E cada noite é uma carta nova que deixo sobre a mesa, assinada com lágrimas invisíveis e o nome dela escrito em cada canto.
Se algum dia ela voltar, encontrará uma cidade dormindo — e um homem ainda acordado, esperando numa cadeira qualquer, entre o segundo gole e o penúltimo suspiro.
Nem que seja por um gole de piedade… é o que penso quando olho para a porta do bar, como quem espera um milagre cotidiano. Talvez ela entre. Talvez traga nos olhos um pedido de desculpas. Ou um silêncio bonito o suficiente para me refazer. Mas ela não vem. E mesmo assim, eu insisto.
Porque quem ama de verdade não espera apenas o amor. Espera até o vestígio dele. Um gesto, um sopro, um gole de piedade servido em taça de cristal. E se vier aguado, se vier em retardo, se vier tremendo — ainda assim servirá. Porque o coração já está habituado a viver com migalhas de eternidade.
O bar agora está quase vazio. Apenas um casal sussurra ao fundo, e um homem dorme sobre os próprios braços, vencido por um cansaço que não é só físico. A radiola, cansada de cantar, range. Mas antes de parar, ela me dá um último presente: toca “El Día Que Me Quieras”, e Gardel me fala ao ouvido como um velho amigo de tragédias partilhadas.
Levanto a taça. Brindo com ninguém. E bebo. Bebo não pelo sabor — mas pelo rito. Bebo porque ela gostava de ver a cor do vinho refletida em meu olhar. Bebo para que, de algum modo, seus olhos se lembrem. Porque no fim das contas, o que eu queria mesmo era isso: que ela se lembrasse. Nem que fosse num suspiro. Num sonho breve. Num tropeço de memória no meio da tarde.
Amar também é isso: estender a mão no escuro, mesmo sabendo que ela não será tocada. Mas ainda assim estendê-la — por fé. Por loucura. Por fidelidade a algo que só nós dois vivemos, e que talvez nem ela se lembre mais. Mas eu lembro.
A madrugada é uma carta assinada em branco porque o amor, quando se vai, deixa apenas lacunas. E a gente preenche com o que tem: vinho, suspiros, silêncios, e um gole de piedade que nunca chega.
Mas se chegar — ah, se chegar — que venha frio, tardio, derramando-se nos cantos da alma. Porque mesmo a piedade, quando é dela, vira bênção.
Enquanto isso, sigo…
Como quem leva os olhos dentro de uma taça de vinho, procurando em cada gole o rosto que a memória ainda insiste em salvar da noite.
Sigo como quem caminha sem pernas, como quem respira só por engano.
Como quem desaprendeu todos os gestos — menos o de esperar.
Olho a rua. A cidade inteira parece deserta, mas sei que, em algum lugar, ela respira. Talvez esteja dormindo… com aquele rosto sereno que o tempo não conseguiu apagar do meu pensamento. Talvez, entre sonhos leves e inocentes, murmure palavras que um dia disse para mim — sem saber que ainda ecoam no meu peito. E mesmo sem saber, ainda me habita.
E mesmo assim, eu brindo.
Brindo ao amor que não volta.
Brindo ao que fomos.
Brindo ao que, mesmo doendo, ainda somos.
Nem sei mais se a madrugada termina ou se apenas me dissolve.
E se alguém ler esta carta assinada em branco — que é minha vida — que saiba: ainda estou aqui.
Sentado.
Esperando.
Amando.
Como quem não tem mais gestos,
Nem vida.
Mas ainda tem nome.
E coração.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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