Por Marcelo Tognozzi
Colunista do Poder360
Vivemos a era do mau-humor. Um mundo onde a intolerância está moldando relações sociais e o maior exemplo não são os Estados Unidos, mas a Europa. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia continua sem qualquer previsão de terminar, com os campos ucranianos, até pouco tempo o celeiro da Europa, devastados pelas bombas. Durante muito tempo a Europa viveu numa zona de conforto consumindo os grãos ucranianos e se aquecendo com o gás russo.
Sem grãos e sem gás, os europeus foram obrigados a trocar o discurso da sustentabilidade pelas usinas a carvão. Esta semana a Europa voltou a explodir em manifestações na Holanda, Espanha e na França, países cujo bem-estar social está em crise. Uma reportagem no Telegraph assinada pelo editor de economia internacional, Hans van Leeuwen, mostra o tamanho do mal-estar econômico que domina a Europa. A pressão sobre o poder de compra dos cidadãos, especialmente a classe média, está cada vez maior. Enquanto o desemprego na zona do Euro está em 6,2%, o desemprego entre os jovens até 25 anos é mais do dobro: 14,6%.
Leia maisHá uma competição por emprego com imigrantes jovens, dispostos a trabalhar sem direitos e por salários bem abaixo da média, numa disputa desleal. Até pouco tempo, as autoridades faziam vista grossa, mas com a pressão pelo endurecimento das políticas migratórias estão sendo obrigadas a encarar.
A crise econômica tem obrigado países como a França a cortar despesas, mas o eleitorado não quer abrir mão das suas conquistas. No caso da França, o governo atrapalhado de Emmanuel Macron elevou a relação imposto/PIB para 43,8%, a maior entre os países da União Europeia.
A França tem vivido um cotidiano de protestos, dia sim outro também. Há poucos dias, agricultores franceses contrários ao acordo com o Mercosul protestaram com tratores, bloqueando as cercanias da Torre Eiffel. Dizem que o agro, especialmente do Brasil, faz concorrência desleal. Mentira. O agro francês é viciado em subsídios e não consegue ter a mesma produtividade dos brasileiros. Com o poder aquisitivo do povo caindo, os impostos subindo para financiar a máquina e o bem-estar social, os produtores franceses vão acabar indo para o brejo.
Na Holanda, violentos protestos contra imigração acabaram com prisões em Amsterdã e Haia. As frustrações sociais tendem a aumentar num país com crescimento de 1,2% e inflação de 3%. Na Bélgica, Itália, Alemanha, Áustria e Espanha também registraram protestos e até greves, alguns deles pró-Palestina. Em Barcelona, os protestos acabaram em quebra-quebra e pessoas feridas. Tudo acontece numa Europa onde uma onda de centro-direita vem contaminando o eleitorado com discurso anti-imigração, nacionalismo e ajustes na economia.
O sofrimento aumenta com a guerra tarifária imposta pelos Estados Unidos, na luta do presidente Trump para reverter os déficits comerciais e trazer dinheiro para dentro do mercado norte-americano. A China também é outro fator de desestabilização política e econômica. Se por um lado está aliada à Rússia na guerra contra a Ucrânia, por outro depende do mercado europeu para seus produtos mais sofisticados, como os carros elétricos de primeira linha, agora com taxas de 7,5% a 35%. A China entrou contra a União Europeia na OMC (Organização Mundial do Comércio), mas é difícil reverter.
Os analistas financeiros estão prevendo ainda mais mau-humor no próximo ano, com a política cada vez mais polarizada, como na França, Espanha, Alemanha e Reino Unido. Para Clarisse Kopff, executiva da seguradora alemã Munich Re, as baixas taxas de crescimento da Europa em comparação com Estados Unidos e China devem colocar ainda mais lenha na fogueira da crise social. “Teremos mais pressão no poder de compra dos europeus, alimentando mais protestos e mais convulsão social”, disse.
Ainda há uma pressão adicional para o rearmamento da Europa pelos Estados Unidos, país com maior peso na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). O próprio secretário de Defesa norte-americano, Pete Hegseth, virou garoto propaganda ao pedir, em 15 de outubro em Bruxelas, que a Europa compre mais armas. Seu argumento é o de que quanto mais forte, maior a garantia de paz. Mas a França, Itália, Espanha e Reino Unido fazem cara de paisagem, se recusando a comprar a conversa de Hegseth.
A tendência é que a situação na Europa piore bastante antes de voltar à normalidade, se é que voltará. Todo o sistema de proteção social edificado no pós-guerra está começando a ruir. O estresse é enorme, porque os europeus estão sendo obrigados a sair da sua zona de conforto e viver situações que, para eles, eram restritas à América Latina ou alguns países asiáticos.
Imprensada entre o Oriente e o Ocidente, a Europa precisa urgentemente rever seus conceitos. Tem ajudado a Ucrânia contra a Rússia numa guerra com um forte componente ideológico, a qual já consumiu bilhões e bilhões de euros que, se injetados na economia, ajudariam a conter o mau-humor. Não querem entregar seu celeiro para Putin, mas mesmo que a guerra acabe hoje, vai demorar muito para recuperar a produção.
Europeus terão de se adaptar cada vez mais aos tempos de mudança de costumes e desfechos imprevisíveis. Nestes momentos, nada melhor do que seguir a sabedoria de Voltaire. Certa vez perguntaram a ele, que negava a existência de Deus, como podia receber a sagrada comunhão. E Voltaire com seu jeito blasé: “Tomo o café da manhã conforme o costume da terra”.
Leia menos