Por Inácio Feitosa*
Ao escrever ‘Crianças Invisíveis: quando a inclusão bate à porta da prefeitura – autismo, TDAH e o direito à educação nas redes municipais do Brasil’, obra que lançarei em breve pela Editora IGEDUC, compreendi com clareza que a legislação brasileira avança mais rápido do que a capacidade dos municípios de executá-la.
O Decreto nº 12.686/2025, que institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva, confirma essa distância. Ele amplia direitos, reorganiza instrumentos e redefine diretrizes, mas não cria as condições necessárias para que o município consiga implementá-lo no ritmo e na complexidade exigidos.
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O decreto determina que a escola comum seja o espaço obrigatório da inclusão, reduzindo o AEE (Atendimento Educacional Especializado) à condição complementar e exigindo adaptação curricular desde o primeiro momento. Embora esteja alinhado à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status constitucional, essa mudança ocorre sem transição gradual, sem reforço técnico e financeiro e sem parâmetros mínimos de equipe. A norma cria a obrigação antes de criar a condição.
Isso impacta de forma ainda mais profunda os pequenos e médios municípios, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Como apresento no livro, estudos mostram que muitos deles dependem quase integralmente do FPM (Fundo de Participação dos Municípios), não possuem equipe multiprofissional e carecem de psicólogo escolar, terapeuta ocupacional ou neuropediatra. Sem esses profissionais, torna-se impossível dar cumprimento imediato às determinações do decreto, como elaboração de planos individualizados, reorganização da formação docente e integração efetiva entre educação, saúde e assistência social.
O decreto também redefine o papel do profissional de apoio escolar. Antes, cada rede utilizava uma nomenclatura própria: cuidador, monitor, auxiliar de inclusão. Agora, adota-se oficialmente a expressão profissional de apoio escolar e sua atuação passa a exigir integração ao planejamento pedagógico, participação na construção do PEI (Plano Educacional Individualizado) e colaboração com o PAEE (Plano de Atendimento Educacional Especializado). No entanto, sem carreiras estruturadas, sem formação continuada e sem financiamento estável, essa mudança conceitual não se transforma automaticamente em mudança prática. O cotidiano escolar continua marcado por rotatividade, insuficiência e improviso.
Esse descompasso entre norma e realidade produz um fenômeno analisado no livro com profundidade: o crescimento da judicialização. Famílias recorrem ao Ministério Público e ao Judiciário para garantir direitos previstos no decreto. As decisões judiciais estão corretas ao exigir cumprimento imediato da lei. Contudo, como a responsabilidade de execução recai somente sobre o município, cria-se um cenário em que a legislação é federal, o direito é nacional, mas o ônus é exclusivamente municipal. O gestor local passa a responder por falhas que não são suas, mas do próprio pacto federativo.
A inclusão escolar não falha por falta de legislação. Falha porque a legislação se distancia da realidade concreta do território. O Decreto nº 12.686/2025 avança em princípios e diretrizes, mas exige que sua implementação ocorra em redes que não receberam reforço federativo proporcional, que não dispõem de equipes permanentes, que não possuem acesso a serviços especializados e que precisam conciliar inúmeras responsabilidades simultâneas com orçamentos limitados. As exigências são as mesmas para todos; as condições, não.
Por isso, reafirmo a tese central do livro: a inclusão é municipal na execução, mas deve ser nacional na responsabilidade. Sem financiamento federal consistente, equipes regionais multiprofissionais, colaboração efetiva dos Estados, integração entre SUS (Sistema Único de Saúde), SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e educação, formação docente contínua e parâmetros nacionais realistas, a política continuará existindo mais no papel do que na escola.
Enquanto isso não ocorre, a inclusão seguirá forte na legislação, moderada na jurisprudência e frágil dentro das salas de aula municipais, onde professores e profissionais de apoio escolar fazem diariamente o que o decreto determina, mas sem receber o que a política deveria oferecer. Ainda assim, é na escola municipal – espaço de dignidade silenciosa – que a inclusão se reinventa a cada dia, apesar de tudo.
*Escritor, advogado e fundador do Instituto IGEDUC
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