Como despertar, libertar e revitalizar o Recife? Foi essa a inquietação que moveu Chico Science & Nação Zumbi, buscando romper a inércia de uma cidade afundada na desigualdade e na marginalização de sua cultura. Trinta anos depois, o manguebeat e as injustiças sociais não são apenas memórias, mas ainda ecoam em diversas sonoridades e gerações. Entre as novas vozes pós-mangue, destaca-se João Havaí, mais conhecido como Dichavai, que nasceu três anos após a morte de Chico. Ele desponta como fenômeno no trap pernambucano e, sendo um autêntico bairrista, preserva o sotaque que enaltece suas raízes em cada verso.
Anteriormente conhecido como Young Havai, o artista natural de Jaboatão dos Guararapes decidiu se reinventar e mesclar suas raízes nordestinas com poesia e uma visão crítica da sociedade, começando pela escolha do seu novo nome. “A ideia é, além de resgatar o meu primeiro nome artístico, também fazer uma conexão com um ícone da música que eu admiro muito, que é o Djavan”, explica em conversa exclusiva com o Diário de Pernambuco. Dichavai se propõe a dar uma nova cara ao legado de Chico Science, com o neomangue — uma explosão sonora que combina as batidas do Jersey Club, estilo de música eletrônica carregada de influências do hip hop, downtempo, R&B e crunk, com a energia percussiva do maracatu.
Leia maisEle explica que sua música busca retratar o povo pernambucano de forma genuína, sem se limitar aos clichês de chapéu de palha, cuscuz e bolo de rolo. “Minha missão é representar a cultura da gente sem precisar reforçar a imagem estereotipada que a mídia sempre impôs sobre o povo nordestino. Um povo pobre, ignorante, tratado como piada nacional. Durante toda a minha vida, eu ouvi novelas com personagens que tinham sotaques que não me representavam, com abordagens sobre o Nordeste que eu não me via ali”, alega.
O músico convoca os caranguejos do manguebeat para construir um trap imerso na cultura pernambucana em Mainha, faixa do álbum recém-lançado Entre Luz e Lama. O clipe, que estreou no final de janeiro, já evidencia o impacto da sua proposta artística. A música soma 70 mil reproduções nas plataformas digitais, destacando-se pela carga emocional e as raízes do artista. “É muito importante que a gente continue carregando essa bandeira, porque nossa cultura é essencial. O maracatu é nosso patrimônio”, destaca.
A emoção toma conta da faixa desde os primeiros segundos, com o áudio da mãe do artista expressando sua alegria ao ouvir seu filho na rádio. Esse momento de ternura se reflete na mensagem da música, que nos versos seguintes celebra a cultura pernambucana e o compromisso do artista com suas origens: “Representando o mangue, ele acha demais, faço pela cultura, não ligo pro hype”. Em seguida, Dichavai se permite sonhar alto: “No fim desse ano vou comemorar no jato particular, conexão Recife a Dubai”.
Mais do que apenas diversão, o artista vislumbra uma chance de expandir sua arte e conectar suas raízes com o mundo. “O que realmente desejo é globalizar minha música, mas sem perder a essência do meu estado. Se eu conseguir isso e alcançar outras partes do mundo, vou estar no caminho certo”, afirma. No entanto, ele está ciente dos desafios de conquistar um público desconectado da cultura local. ‘A música pernambucana é muito forte, mas, por exemplo, se você levar o brega para São Paulo, o público de lá não vai consumir da mesma forma. Lá, a galera tem uma mentalidade diferente, outro padrão de consumo musical, e isso torna tudo muito local. Furar essa bolha é complicado”, observa.
Superar essa barreira, para ele, passa por seguir o exemplo do Rei do Mangue e manter acesa a chama da cultura pernambucana. “Chico Science é o nosso Michael Jackson, quem representou a nossa terra, e seu impacto continua sendo sentido. Ele trouxe uma ideologia, uma visão, e eu a carrego comigo. É o meu mundo, que eu me identifico e pretendo levar adiante”, declara. Inspirado pela potência de um maracatu atômico, Dichavai junta forças para recriar o caos e nos tirar da lama.
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