Por Antonio Magalhães*
Julgamentos sem crimes prováveis, justiçamentos para punir adversários políticos ao arrepio da lei, inquéritos intermináveis, tudo isso e muito mais vêm alimentando um ciclo de violência policial e judiciária nunca vista no Brasil. Por isso veio à tona nesta semana os fatos do maior erro jurídico da França, em 1894, que condenou injustamente à prisão perpétua o capitão do exército Alfred Dreyfus por traição à pátria. Depois da condenação, a sociedade francesa foi mobilizada pelo escritor Emile Zola em defesa do capitão: “Ele não pode ser inocente sem que o tribunal militar que o condenou apareça como culpado.”
O caso Dreyfus – que lembra determinadas iniciativas brasileiras – dividiu a França nos finais do século 19. Após um breve julgamento num tribunal militar à porta fechada, o capitão recebeu a condenação de prisão perpétua por ter supostamente passado segredos militares ao exército alemão. O processo poderia ter sido resolvido rapidamente, uma vez que os serviços de contraespionagem franceses detectaram erros processuais com indícios seguros de que tinha se tratado de uma injustiça.
Leia maisMas o assunto tomou uma dimensão nacional quando os responsáveis do exército ocultaram informações e forjaram documentos, agravando a pena de Dreyfus. Alastrou-se que o capitão fora um bode expiatório num processo viciado de início, que fora incriminado por ser judeu e que as autoridades queriam salvar a face da instituição militar à custa do sacrifício de um inocente. O caso abalou profundamente a confiança dos franceses nas suas instituições e na sua Justiça, dividindo a sociedade entre apoiadores e detratores do capitão.
Dois anos depois da condenação de Dreyfus, a família e apoiadores do capitão tentaram chamar a atenção para a fragilidade das provas. Até que o escritor Emile Zola (1840-1902) mobilizou a opinião pública francesa para tentar corrigir uma das maiores injustiças cometidas pelo Estado contra um cidadão, vítima de armação política. Zola tornou pública em 1898 a defesa numa carta ao presidente francês, publicada no jornal L’Aurore, sob o título de “J’acuse” (Eu acuso).
O escritor defendeu explicitamente a liberdade de expressão e os direitos humanos – um marco do jornalismo da época que contou com apoio de intelectuais e juristas, entre eles o brasileiro Ruy Barbosa. A carta revelou as entranhas de um dos maiores atentados às liberdades individuais contra um só homem. Na missiva ao presidente, Zola diz que não quer ser cúmplice pelo silêncio da condenação de um inocente. Quando o verdadeiro culpado, revelado anos depois, pela entrega dos documentos aos alemães foi o comandante Ferdinand Walsin Esterhazy, protegido pelos generais que queriam punir Dreyfus.
Lamentou-se Zola na sua carta ao presidente francês: “Todas as noites eu veria o espectro do inocente que expia cruelmente torturado, um crime que não cometeu. Por isso me dirijo a vós gritando a verdade com toda a força da minha rebelião de homem honrado. Estou convencido de que ignorais o que ocorre. Mas a quem denunciar as infâmias desta turba de malfeitores, de verdadeiros culpados, senão ao primeiro magistrado do país?!”.
Registra a história que a pressão contra Dreyfus foi tanta a ponto dos generais o deixarem incomunicável na prisão, ameaçarem sua mulher se ela falasse do assunto, sua casa foi revistada e nada comprometedor foi encontrado. Segundo Emile Zola, na carta ao presidente, “para justificar a condenação pelo tribunal fala-se da existência de um documento secreto, arrasador, que não se pode publicar e que justifica tudo”. Tal papel, como a minuta do suposto golpe brasileiro, nunca foi visto durante a instrução processual. Lamentável. É isso.
*Jornalista
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