Por Flávio Chaves*
Há dias em que o tempo não passa, ele escorre, escapa, tropeça nas próprias horas e se perde, como se também estivesse à procura de alguma coisa esquecida, um nome sussurrado, um olhar antigo, um gesto suspenso no ar antes de se fazer abraço. Nesse tempo que não grita, mas pesa, há um rumor surdo, uma ausência que se instala devagar, com o pudor das tristezas mansamente eternas.
Esse tempo que navega em desatino não tem bússola, não tem cais, é um errante que me procura enquanto permaneço imóvel, como quem oferece o corpo à maré. Porque do lado de cá da janela há um homem parado, e dentro dele há uma casa vazia onde ainda ecoam vozes que partiram sem fechar a porta. Quem passa na rua acelera o passo, fecha a janela, abre o guarda-chuva. Mas eu paro. Fico. Sinto.
Leia maisOntem, por exemplo, choveu com uma melancolia que não era do céu, era da lembrança. A chuva parecia me reconhecer. Sentei no banco da praça onde ela, um dia, me esperou com um vestido azul e um cansaço no olhar que eu não soube entender. Não foi uma cena trágica, nem houve adeus. Apenas o silêncio entre nós cresceu tanto que se tornou presença. E ali, naquele banco agora encharcado, percebi que certos instantes não terminam, apenas se escondem dentro do tempo.
Há uma arte em permanecer enquanto tudo se move, uma espécie de resistência íntima contra a pressa do mundo, contra a substituição apressada dos sentimentos, contra a morte prematura dos instantes. E talvez seja isso que o tempo, nesse seu navegar trôpego, venha buscar em mim: a memória do que não passou, o eco do que ficou.
Carrego comigo o abraço que não dei, o nome que não chamei, o caminho que deixei para depois. São sombras que não assustam, mas habitam. Pesam como chuva antiga no fundo das roupas, como saudade que ninguém nomeia, como um amor que se escondeu para não morrer. É o peso de uma vida inteira condensada num gesto não vivido, numa carta que ficou no bolso, numa tarde que não chegou a anoitecer.
E, no entanto, mesmo nessa quietude que se parece com o fim, há um fio de esperança que insiste, tímido, como quem não quer incomodar. Um quase calor por trás da chama. Um clarão contido esperando o instante exato para romper o breu.
Talvez o horizonte esteja mesmo me procurando, talvez eu seja o ponto imóvel que ancora o tempo em sua errância. E nessa espera sem alarde, nesse silêncio quase prece, descubro que há beleza também no estardalhaço do que não foi. Que viver é, muitas vezes, escutar o que não se disse e acolher o que ainda dói.
Porque há uma luz que não se apaga, mesmo que às vezes apenas tremule.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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