Por Marcelo Tognozzi
Colunista do Poder360
Raimundo Faoro tinha 33 anos quando, em 1958, publicou sua obra-prima, “Os Donos do Poder”, até hoje o livro mais importante sobre a formação, evolução e consolidação do Estado brasileiro. Tive o privilégio de estar com doutor Faoro algumas vezes, a primeira delas quando presidia a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), ainda na antiga sede do centro do Rio, e era um opositor da ditadura militar, defensor da anistia e da libertação dos presos políticos.
Ele passou o bastão para Eduardo Seabra Fagundes em 1979 e, no ano seguinte, fui o primeiro repórter a chegar à OAB quando do atentado à bomba que matou dona Lida Monteiro da Silva, secretária da presidência e mãe de uma colega de escola de uma das minhas irmãs. Depois estive com ele algumas poucas vezes na década de 1990, quando namorou Ângela Carneiro, mãe de Raquel, então minha companheira. Faoro se apaixonou por Ângela, linda, inteligente e parceira de Gilberto Braga nos scripts das novelas da Globo.
Leia mais
Doutor Faoro, que as pessoas chamavam de Faoro e ele corrigia seco: é Fáuro. Eu que me chamo Tognozzi, tão italiano quanto, sei o quão raros são os que acertam a pronúncia. Sem a menor paciência para bobagens, era sério e elegante, óculos de lentes grossas, gaúcho fumador de cachimbo.
Seu livro deveria ser obrigatório em todas as escolas brasileiras, porque é nele que se aprende como funciona o poder real nestas terras de Pindorama. Nele, aprendi que o Estado brasileiro serve a uma casta de funcionários públicos, a maioria medíocres, como diria Ortega Y Gasset, mais conhecido pela frase sobre o homem e pelas circunstâncias do que pela sua obra genial “A Rebelião das Massas”.
Creio que Faoro possa ter bebido em Ortega Y Gasset, que morreu três anos antes da publicação de “Os Donos do Poder”, mas não tenho certeza. Nos últimos dias, a realidade virou uma peça digna do livro de Faoro. O ministro da Fazenda, cujo prestígio anda se esvaindo qual sangria desatada, quer porque quer aumentar impostos.
Adotou uma narrativa meia-boca, prometendo tirar dos ricos para dar aos pobres. Se andasse pelas ruas de São Paulo ou Recife, entenderia o quanto os pobres estão por aqui com o governo por causa da carestia. Sabem muito bem que quando o dono da padaria paga mais imposto, o preço do pão sobe, assim como o da carne de segunda, remédios e por aí vai. Só os pobres e a classe média perdem.
Ir à feira ou ao mercado virou malabarismo. A dona de casa tem de ficar fazendo as contas, trocando de produto, vendo as porções encolherem. Não se vendem mais ovos às dúzias, mas às dezenas. E o preço, ao invés de cair, subiu. O meio quilo virou 450 gramas, o quilo, 900. Fernando Haddad quer mais impostos só para financiar, como ensinou Faoro, uma máquina gulosa e gastadeira, como acontece desde os tempos coloniais: cobra muito e dá retorno mínimo. Quando o sujeito governa sem plano de governo, a coisa piora muito.
Haddad exerce na prática o patrimonialismo tão criticado por Faoro. É uma maldita herança ibérica, na qual os poderosos se acham donos de tudo, enquanto as relações pessoais e o favorecimento de aliados definem o exercício do poder.
O governo quer arrecadar para gastar de olho em 2026. É o Estado antigo, quase medieval, nivelando os cidadãos por baixo, destroçando a classe média e impedindo a prosperidade nas camadas mais carentes da população. Até simpatizantes do governo, como o empresário Wesley Batista, maior produtor de proteína animal do mundo, entendeu a falência do sistema ao cobrar uma porta de saída para o Bolsa Família, argumentando sobre a dificuldade de encontrar gente disposta a trabalhar.
Desde os tempos da colônia, o Brasil viveu ao menos 10 revoltas contra o aumento de impostos. Todos os seus líderes pagaram com a vida. A primeira aconteceu no Maranhão, em 1684, quando Manuel Beckman liderou a revolta contra os impostos abusivos. Foi executado. Em Minas aconteceram duas: a revolta de Vila Rica, em 1720, quando a Coroa portuguesa quis aumentar o 5º, imposto cobrado sobre o ouro, condenando à morte Felipe dos Santos, e a Inconfidência de Tiradentes em 1789. Na Bahia veio a Revolta dos Alfaiates em 1798. Em 1799, seus líderes foram executados, alguns esquartejados, numa praça chamada Piedade, hoje rebatizada de Liberdade.
Em 1817 veio a Revolução Pernambucana por causa dos impostos exagerados, com os quais se financiava a corte instalada no Rio. Novamente a forca fez o serviço, assim como em 1824, com Frei Caneca na Confederação do Equador. Nunca os carrascos trabalharam tanto. Em 1835 estourou a Revolução Farroupilha, uma guerra civil de 10 anos. A Revolta do Quebra-Quilos rebentou em 1874, no Nordeste, quando a população se deu conta de que o governo impôs o uso do sistema métrico para cobrar mais impostos.
Governo quando cobra muito imposto ganha dinheiro, mas não ganha popularidade. Junto com o aumento do imposto vem a percepção do eleitor de que casos de polícia, como o do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), são abafados em vez de resolvidos com ações eficientes e cadeia para os larápios. O governo deseja ressarcir os aposentados roubados com o dinheiro dos impostos que todos nós trabalhamos 149 dias por ano para pagar. É a farra do INSS na base do crédito extraordinário, com um orçamento extraordinariamente arrombado, estatais com prejuízos e segue o baile como se a realidade fosse mera ficção.
Faoro ensinou ser o patrimonialismo brasileiro uma herança do absolutismo português, especialmente da monarquia lusitana, cujo poder era centralizado no rei. O famoso manda quem pode e obedece quem tem juízo. No Brasil, o Estado desembarcou em 1808, muito antes da sociedade. Haddad sabe disso. Azar o nosso.
Os donos do poder são os altos funcionários, magistrados, políticos e militares que se apropriam do Estado para manter privilégios e controle. São os maiores consumidores de impostos, num país onde a modernização tecnológica convive com o clientelismo, compadrio, favoritismo e a ineficiência estatal.
O governo trabalha dia e noite para que todos nós, remediados ou não, paguemos mais impostos. Diante da gestão ineficiente das contas públicas, o ministro Fernando Haddad perdeu o argumento e o discurso para exigir qualquer centavo a mais da sociedade, seja IOF, Imposto de Renda, taxa disso ou daquilo. Governa sem planos, sem metas e sem juízo. Seu discurso é o de uma nota só: me dá um dinheiro aí.
Leia menos