Por Mauricio Rands*
O sofrimento da pandemia, na época, suscitou a expectativa de que a humanidade dela fosse emergir eticamente melhorada. O que parece não ter ocorrido, pelo menos na escala imaginada. Nesse drama por que passa o Rio Grande do Sul, alguns sinais contraditórios. Grupos armados estão roubando casas abandonadas. Como os que se organizaram para roubar e violentar os que perderam a visão no romance “Ensaio sobre a cegueira”, de Saramago.
Outros disseminam fake news para desacreditar o estado brasileiro e as instituições. Assim dificultando a ação de salvamento das vítimas. Como aquelas em que mentem para dizer que os caminhões estavam sendo retidos por não disporem das notas fiscais das doações que transportavam. O prefeito de Farroupilha, Fabiano Feltrin, cuja filiação ao PL teve a presença de Jair Bolsonaro, editou um video de um telefonema do ministro Paulo Pimenta. Armou uma cilada tentando lacrar e criar o factóide de que o governo estaria limitando e burocratizando ajuda ao município. Justo contra um ministro gaúcho que se agigantou no esforço de amparo e articulação de providências do governo federal. O vídeo foi disseminado pelo deputado Eduardo Bolsonaro. Nas crises, uns crescem em estatura. Outros desvelam sua dimensão ética liliputiana.
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Prefeitos como esse são do extrato dos que pregam que o RS se separe do Brasil, sobretudo do Nordeste. Agora, é o Brasil que está salvando o RS. Com R$ 51 bi dos orçamentos e com donativos dos civis de todo o país. Sob a liderança de um nordestino. Mesmo quem gosta de Bolsonaro não tem como deixar de comparar, nem que seja no seu íntimo, sua atitude negacionista e indiferente diante da pandemia e outras tragédias com a atitude engajada, solidária e eficaz de Lula nesse desastre no RS. Fica difícil não perceber e registrar a diferença.
Na desolação da catástrofe no RS, também testemunhamos a virtude. O Jornal Nacional da TV Globo, transmitindo diretamente da cena, mostrou o trabalho dos governos federal, estadual e municipais, das ONGs e dos voluntários. Muitas vezes arrancando lágrimas de todos que guardam dentro de si a chama da empatia, inclusive para com outras espécies. Como na identificação com a resiliência e a perseverança do cavalo Caramelo. Ou com as da senhora de 93 anos: “não vamos esmorecer, vamos reconstruir o Rio Grande”.
O jornalismo profissional engajado na corrente de solidariedade, provando na prática que deve ser valorizado e fortalecido. E como é essencial para a sobrevivência das pessoas e demais espécies. Do próprio planeta. Matérias jornalísticas mostrando todos os aspectos da tragédia. Mas também as iniciativas das correntes de socorro que nos impeliram a levantar da poltrona e acessar o site de doações (https://www.paraquemdoar.com.br/).
Quem assistiu o JN nesses dias experimentou todas as emoções humanas: tristeza, dor, sofrimento, raiva. Mas também esperança, compaixão, enternecimento, amor.
Como os EUA atacados nas torres gêmeas, ou como nas Olimpíadas e nas Copas do Mundo, o Brasil parece estar sendo capaz de se unir em torno do propósito de amenizar o sofrimento do povo gaúcho. Pelo menos no sentimento da maioria, uma pausa na polarização. Apesar de alguns que não estão respeitando a tristeza de tanta gente. Uma minoria, é de se esperar. A dor não deve ter fronteiras. A solidariedade também não. Nem geográficas, nem ideológicas. O desafio é o alívio imediato de tanto sofrimento. Mas, logo em seguida, o da operação de reconstrução. Será a maior da história do Brasil. Que ela seja feita com melhor planejamento e prevenção para que não se reproduzam vulnerabilidades. Que sejam feitos deslocamentos redefinindo onde e como serão construídas estradas, pontes, indústrias, casas, bairros e áreas de cultivo. Que seja revertido o atual modelo de desenvolvimento a fim de que se dê conta das mudanças climáticas causadoras de tanta destruição.
*Advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford
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