Assim, amigos de toda a vida, foram renomeados com muita ternura e um pouco de maldade. Marcelo Cabeção, Marcelinho Mago, Rinaldo Boca de Véio; Paulo Mocinha, Paulo Testinha. Cara de Areia Mijada…Bastava uma rápida olhadela para identificá-los. Menos o Gago. Aí, tinha que deixá-lo falar. Ou tentar.
Como ele, vários foram os gagos na História. Nunca foi doença, apenas um distúrbio neurobiológico, ensinam os estudiosos. A lista de famosos é longa. O sertanejo Inocêncio Oliveira, parlamentar destacado em várias legislaturas, benfeitor de sua terra e de sua gente, foi gago na juventude. Determinado, superou a gagueira.
Quando estudante de Medicina, o qui-qui-qui atrapalhava e o deixava inseguro. Certa vez procurou Guilherme Robalinho e o colega sugeriu que ele conversasse com o professor Bezerra Coutinho, o homem que sabia de tudo.
Inocêncio procurou o mestre, expôs o problema e disse que queria melhorar. O professor foi cruel: “Melhorar, Inocêncio, pra quê? você já gagueja tão bem…
Outros políticos famosos, por outros motivos, também carregaram alcunhas maliciosas. Agamenon Magalhães, era o China Gordo; o senador João Cleofas, João Três Quedas; o esguio Marco Maciel, Mapa do Chile. O sertanejo Manoel Ramos, por motivos óbvios, era Mané Cotó. O irônico jornalista Eugênio Coimbra, dizia que ele podia apoiar o governo, mas não batia palmas.
Diferente de Inocêncio que usou a política para melhorar sua gente sertaneja, nosso Gago da Vila incomodava o próximo.
Individualista, gostava de brincadeiras perigosas. Coisa como colocar chicletes em cadeiras de ônibus ou de cinema. Alfinetes na versão mais impiedosa.
Em algum sábado daqueles anos, nosso time foi jogar em Peixinhos, bairro próximo ao Matadouro, local não muito pacífico com o detalhe assustador: a equipe deles era integrada por marchantes, açougueiros íntimos de facas peixeiras, ferramentas de trabalho.
Nosso time estava enxertado com vizinhos de bairros próximos, constituído por adultos experientes. Dos nossos, apenas um ou dois. Mesmo assim fomos torcer. O Gago também.
Lá pelo final do primeiro tempo, nossa pequena torcida postada na beira do campo de terra batida, acompanhou o escanteio marcado contra nosso time. Um negão de físico avantajado, meio para gordo, baixo, atravancado, foi cobrar a infração. Quando o camarada se abaixou para pegar a bola, o Gago simplesmente deu-lhe uma dedada.
O crioulo ergueu-se rapidamente como se tivesse sido picado por um maribondo naquele sagrado local. Deu de cara com o Gago, alisando o pescoço, olhando para cima, lépido e fagueiro, com cara de “não tenho nada com isso…”. O sujeito ameaçou partir em direção ao Gago. Mudou de ideia e de roteiro. Acelerou o passo foi até as balizas de madeira, onde se amontoavam calças e camisas e retirou uma peixeira. Parecia uma espada. Virou-se, localizou o Gago e correu para pegá-lo. O Gago foi mais rápido e disparou em direção à Estrada de Belém. Peixinhos, Campo Grande, Hipódromo. O crioulão atrás. Em frente à Igreja de Belém, cansou. Parou. Quando o Gago teve coragem de olhar para trás, viu seu perseguidor ajoelhado no chão, esfaqueando a calçada. O Gago acelerou.
Em campo, jogo paralisado. Queriam saber se a gente conhecia aquele elemento, se era nosso amigo e onde morava. Até que Fernando Loquinha afirmou com santa seriedade: “Ele é doido. Saiu da Tamarineira semana passada. Ninguém sabe de onde ele é. Fica pelo Mercado da Encruzilhada , azucrinando a vida dos outros”.
Com a carteira de doido atribuída ao Gago, escapamos. E prudentemente perdemos o jogo.
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