Por Natália Portinari e Aguirre Talento
Do UOL
No município de Mocajuba (PA), 14,7 mil pescadores receberam o seguro-defeso do INSS em 2024. A cidade, localizada às margens do rio Tocantins e a quatro horas de carro de Belém, tem a maior proporção de pescadores por habitante do Brasil.
O problema é que, segundo dados do IBGE, não é possível haver tantos pescadores artesanais na cidade. Há 15,3 mil adultos no município, dos quais 6.300 trabalham em fazendas, 1.800 estão empregados pela prefeitura e 716 atuam no SUS ou como professores.
Leia maisO número de pescadores registrados no país saltou de 1 milhão em 2022 para 1,7 milhão em maio de 2025 — sendo 500 mil novos cadastros desde meados de 2024. O registro é obrigatório para acessar o benefício, pago quando a pesca é proibida por razões ambientais. Em 2024, o governo gastou R$ 5,9 bilhões com o seguro.

Uma investigação do UOL, porém, mostra que os números do Ministério da Pesca e da Previdência não batem com a realidade dos municípios, e que intermediários entre o governo federal e os supostos pescadores estão se beneficiando desse aumento.
As federações que intermedeiam os registros junto ao INSS recebem contribuições das colônias de pescadores e, segundo investigações no Pará, chegam a reter até 50% do seguro pago irregularmente.
Procurado, o Ministério da Pesca afirmou que está implementando mecanismos de controle, como a exigência de biometria e o cruzamento de dados com outras bases do governo (leia mais abaixo).
Além de Mocajuba, outras cidades apresentam números incompatíveis de registro de pescadores, como São Sebastião da Boa Vista (PA), Boa Vista do Gurupi (MA), Ponta de Pedras (PA), Cedral (MA), Nova Olinda do Maranhão (MA) e São João Batista (MA).
Em 34 municípios, os supostos pescadores superam 30% da população adulta, conforme dados do Ministério da Pesca e do IBGE.

Produção não bate
Não existem dados unificados sobre pesca artesanal no Brasil, mas os dados da piscicultura, produção de peixes que ocorre de forma complementar à pesca, mostram que o Maranhão não está entre os líderes na área.
O estado é o sexto maior produtor de pescados, de acordo com a Associação Brasileira de Piscicultura. Em 2022, o estado produziu 50,3 mil toneladas — longe do Paraná, líder nacional com 194,1 mil toneladas. O Pará, segundo estado com mais pescadores registrados, produziu apenas 25,1 mil toneladas.
Outro indício de irregularidade é que o Maranhão possui apenas 621 embarcações de pesca cadastradas, uma média de mil pescadores por barco. Além disso, é o único estado costeiro sem nenhuma empresa pesqueira registrada. Em Santa Catarina, por exemplo, há 218.

O presidente licenciado da Federação dos Pescadores do Maranhão, o deputado estadual Edson Cunha de Araújo (PSB), é investigado pela PF por supostas fraudes em contas de aposentados.
Entre maio de 2023 e maio de 2024, ele foi destinatário de R$ 5,4 milhões da federação de pescadores, segundo dados do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).
A multiplicação dos pescadores
O crescimento dos registros foi impulsionado por colônias e federações que mantêm acordos de cooperação com o INSS para solicitar o benefício em nome dos pescadores.
A principal entidade representativa do setor é a CBPA (Confederação Brasileira dos Trabalhadores de Pesca e Aquicultura), alvo da PF por suspeita de fraudes em descontos indevidos em aposentadorias. O convênio da entidade com o INSS foi suspenso após a operação.

Um terço dos inscritos no RGP (Registro Geral de Pesca) está hoje no Maranhão — aproximadamente 590 mil pessoas. O estado é seguido pelo Pará, com 347,5 mil registros. Ambas as federações estaduais são ligadas à CBPA.
O presidente da Fetape-Pará, José Fernandes Barra, foi denunciado pelo Ministério Público Federal em agosto de 2024 sob a suspeita de fraudes nos registros entre 2020 e 2021. A acusação não aborda fatos ocorridos em períodos mais recentes.
Ele também preside uma colônia em Cametá (PA), onde 33% da população — 44 mil pessoas — está registrada como pescadora. Em 2024, a entidade inscreveu 31,9 mil beneficiários só nesse município, conforme dados do INSS. Outras 12 entidades citadas pelo MPF como envolvidas em fraudes inscreveram, juntas, 45,2 mil pessoas no Pará no ano passado.
Segundo a Polícia Federal, o desvio mensal do seguro-defeso no estado chegava a R$ 130 milhões por mês. As investigações apontam retenção de até metade do valor dos benefícios e uso indevido de senhas de servidores do Ministério da Pesca e do INSS.

Controle e mudanças no sistema
Em 2024, o número de beneficiários do seguro-defeso chegou a 1,1 milhão — o maior da série histórica e um crescimento de 34% em relação a 2022. Para receber, é preciso estar inscrito no RGP há pelo menos um ano e não ter outra fonte de renda.
Segundo dados obtidos pela reportagem via LAI (Lei de Acesso à Informação), 1.309 entidades estão conveniadas ao INSS para inscrever pescadores no sistema.

Em resposta às suspeitas, o governo anunciou em janeiro que só receberá o benefício quem tiver biometria validada. A medida foi formalizada por decreto em 25 de junho.
Outra mudança foi incluída em uma medida provisória do dia 11 deste mês: as prefeituras terão que homologar os beneficiários. O TCU (Tribunal de Contas da União) conduz auditoria para estimar o volume de pagamentos irregulares, cujo conteúdo ainda é sigiloso.
Fraudes são antigas
A Polícia Federal conduz investigações frequentes sobre fraudes no seguro-defeso, com operações anuais em diferentes estados. Uma das maiores foi a Operação Enredados, de 2015, que reduziu em 45% o total de beneficiários no ano seguinte.
Abraão Lincoln, atual presidente da CBPA, foi preso preventivamente à época e se tornou réu sob a acusação de corrupção, lavagem de dinheiro e caixa dois. Ele também é investigado por irregularidades em descontos indevidos em contas de aposentados.
No ano passado, Lincoln participou da inauguração da nova sede da CBPA em Brasília ao lado do ministro da Pesca, André de Paula (PSD).
Em 2017, uma auditoria da CGU (Controladoria-Geral da União) revelou que 66% dos pagamentos entre 2013 e 2014 apresentavam fraudes, o que causou prejuízo estimado de R$ 5,9 bilhões (valores atualizados).

Outro lado
Abrão Lincoln nega irregularidades e critica a exigência de validação pelas prefeituras. Segundo ele, recentemente, “todo mundo avacalhou, todo mundo tirou carteira de pescador para ter acesso aos benefícios sociais”, mas a responsabilidade não é das entidades.
Ele afirma estar “muito preocupado” com as restrições impostas pelo governo, que, segundo ele, podem dificultar o acesso dos verdadeiros pescadores. “Colocar isso nas mãos dos prefeitos será um instrumento político.” Diz ainda que o aumento nos registros foi provocado pelo uso indevido de senhas por lan houses.
O Ministério da Pesca disse que o novo sistema, com cruzamento de dados e biometria, visa fortalecer os controles e prevenir fraudes. A pasta diz colaborar com órgãos de controle e reafirma compromisso com a transparência.
Sobre a presença do ministro na inauguração da sede da CBPA, o ministério afirmou que André de Paula mantém uma postura institucional de diálogo com representantes da sociedade civil.
O INSS, o Ministério da Previdência, Edson Araújo, José Fernandes Barra e a Fetape-Pará não se manifestaram.
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