Por Maurício Rands*
Em 2022, o governo federal gastou com investimentos e inversões financeiras (despesas de capital, exceto amortização da dívida pública) R$ 125 bilhões. Isso representou 1,3% do PIB. Segundo o portal da transparência, em 2024, até agora, foram empenhados R$ 37.681.784.721,76 com emendas parlamentares.
Desse total, R$ 13.640.757.707,02 foram empenhados com “emendas individuais – transferências com finalidade definida”. Outros R$ 10.319.707.512,37, com “emendas de comissão”. R$ 7.682.452.727,00, com “emendas individuais – transferências especiais”, as chamadas emendas pix. E mais R$ 6.038.866.775,37, com emendas de bancada. Esse é o tamanho do sequestro do orçamento federal pelos parlamentares.
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Nossos parlamentares estão decidindo a aplicação de 24,2% de toda a despesa discricionária que o governo pode usar para investimentos. Contra 2,4% nos EUA e menos de 2% em 24 países da OCDE. Assim usurpam o poder do Executivo. A farra pipocou em 2020, quando o então presidente entregou-se ao esquema parlamentar do orçamento secreto. Naquele ano, o recorde das emendas empenhadas: R$ 37.540.725.479,42. Até hoje não batido.
O instrumento do orçamento secreto foram as chamadas emendas RP-09, as emendas do relator do orçamento na comissão mista do Congresso Nacional. Que em 2022 tinham chegado a R$ 8.640.941.812,17. Em dezembro de 2022, o STF proibiu o orçamento secreto. Aí os parlamentares contornaram a proibição através do aumento das emendas individuais com finalidade definida (que passaram de 29,07% para 36,20%), pelo aumento das emendas de comissão (que passaram a 27,39%) e pela criação das emendas pix (20,39%).
Contra esse sequestro orçamentário, o PSOL ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.697 atacando a obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares tanto individuais quanto de bancadas, que havia sido introduzida pelas emendas constitucionais nº 86/2015, 100/2019, 105/2019 e 126/2022.
O argumento foi de que essas EC são incompatíveis com os seguintes princípios da CF/88 que são cláusula pétrea irreformáveis pelo poder constituinte derivado: separação dos poderes (art. 60, § 4º, III) sistema federativo (art. 60, §4º, I) e democrático (art. 60, § 4º, II). E que essas mudanças promoveram uma espécie de “semipresidencialismo orçamentário” não previsto na CF.
Com muita coragem cívica, o ministro Flávio Dino deferiu medida cautelar para suspender todas as emendas impositivas introduzidas por essas emendas. Para isso, utilizou o princípio instrumental de hermenêutica constitucional conhecido como “interpretação conforme à Constituição”. E, assim, conferiu aos dispositivos constitucionais a chamada “interpretação conforme” para declarar e determinar que: “Não é compatível com a Constituição Federal a execução de emendas ao orçamento que não obedeçam a critérios técnicos de eficiência, transparência e rastreabilidade, de modo que fica impedida qualquer interpretação que confira caráter absoluto à impositividade de emendas parlamentares.”
Na liminar, o ministro determinou que “a execução das emendas parlamentares impositivas, quaisquer que sejam as modalidades existentes ou que venham a ser criadas, somente ocorrerá caso atendidos, de modo motivado, os requisitos, extraídos do texto da Constituição Federal e das normas infraconstitucionais aplicáveis”.
E exemplifica essas exigências: plano de trabalho, compatibilidade com a LDO e o PPA, efetiva entrega de bens e serviços à sociedade, com análise de mérito pela autoridade administrativa, cumprimento de regras de transparência e rastreabilidade, que permitam o controle social do gasto público, com a identificação de origem exata da emenda parlamentar e destino das verbas, da fase inicial de votação até a execução do orçamento, e obediência a todos os dispositivos constitucionais e legais que estabeleçam metas fiscais ou limites de despesas. A cautelar, finalmente, determinou a sustação de todas as emendas impositivas até nova regulamentação a ser feita mediante diálogo institucional entre os poderes Executivo e Legislativo.
Justificando seu voto, o relator Flávio Dino argumentou que o “Orçamento Impositivo não deve ser confundido com ‘Orçamento Arbitrário’. O espaço de discricionariedade ínsito a diversos aspectos da atuação pública não pode dar lugar à arbitrariedade, que desconsidere a disciplina constitucional e legal aplicável à matéria.
As emendas parlamentares impositivas devem ser executadas nos termos e limites da ordem jurídica, não ficando ao alvedrio ou sob a liberdade absoluta do parlamentar autor da emenda. Com efeito, é incompatível com a ordem constitucional a execução privada e secreta do orçamento público”.
As mesas diretoras da Câmara e do Senado, e os partidos PL, União Brasil, PP, PSD, PSB, MDB, Republicanos, PSDB, Solidariedade, PDT e parte do PT assinaram requerimento ao presidente do STF pedindo a suspensão da cautelar. No que foram rechaçados pelo ministro Barroso. Em seguida, o plenário virtual confirmou a cautelar do ministro Flávio Dino por unanimidade. Pondo freio à farra das emendas.
A retaliação do Congresso foi acelerar a tramitação de duas PECs: uma permitindo que o parlamento revogue decisões do STF e outra proibindo as decisões monocráticas de seus ministros. O Congresso age, assim, em defesa da manutenção do sequestro orçamentário que promoveu nos últimos anos à revelia dos princípios constitucionais. Na contramão da opinião pública e dos especialistas, não parece provável que, desta feita, o corporativismo parlamentar vá prevalecer.
Esse episódio deveria servir de advertência para a deformação da democracia brasileira que foi promovida pelo atual sistema partidário e eleitoral. Hoje temos uma democracia capturada por oligarquias partidárias nada democráticas. Sequestraram o orçamento com as emendas impositivas. Passaram a decidir quem pode se eleger ao manipular os R$ 8 bilhões dos fundos eleitoral e partidário a seu bel prazer. Geralmente privilegiando familiares e apaniguados. Até quando? Desta feita, ao menos o sequestro do orçamento foi corajosamente enfrentado pelo ministro Flávio Dino e seus pares.
*Advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap e PhD pela Universidade Oxford
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