Durval teve 4 anos de escola. Dona Benedita menos ainda: 3. Decidiram apostar tudo na educação dos filhos. Mandaram Cristovam para o Educandário Castro Alves onde, pelas mãos de dona Nely, aprendeu a ler e a escrever. Vivia numa casa com geladeira, cama e estante de livros. Não precisava de mais nada. Foi o começo de tudo.
O menino virou engenheiro. Mas um engenheiro diferente. Não erguia casas ou prédios, ruas ou viadutos. Virou especialista nas estradas do conhecimento. Aprendeu que educar é o maior amor do mundo. Herdou de Anísio Teixeira (1900-1971), Darcy Ribeiro (1922-1997), Paulo Freire (1921-1997), d. Helder Câmara (1909-1999) e Josué de Castro (1908-1973) a fé na educação libertadora. Cristovam tem o DNA deste Brasil de intelectuais transformadores, desconhecidos das novas gerações, brasileiros da gema.
Escreveu mais de 100 livros, mais um sem-número de artigos, cartilhas, folhetos e livretos, para os mais diferentes públicos, desde crianças até acadêmicos. Uma virilidade literária. Ao invés de ser escravo do problema, virou especialista em soluções.
Militante da Ação Popular nos anos 1960, organização de esquerda ligada à Igreja Católica, Cristovam já era engenheiro e trabalhava como estatístico do velho IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários), quando d. Helder conseguiu para ele uma bolsa de doutorado em Economia na Universidade de Paris, a Sorbonne.
Casou-se com Gladys, olhos da cor do mar, companheira da vida toda, e saiu desembestado mundo afora. Deixou para trás a barra pesada do Brasil da ditadura, um irmão preso, amigos perseguidos, outros mortos, a tragédia seguindo firme seu curso. Inabalável.
Passou os anos do doutorado morando na Casa do Estudante da Tunísia, na Cidade Universitária de Paris. De vez em sempre ia filar bóia na casa de Josué de Castro, autor de “Geografia da Fome“, figura reverenciada mundo afora e já oficialmente um exilado político. Seu camarada Sebastião Salgado, estudante de Economia, nem imaginava que se tornaria um dos maiores fotógrafos do mundo.
Saiu da Sorbonne direto para o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Trabalhou no Equador, Honduras e Washington fazendo o que mais gostava: avaliação econômica de projetos. Por sinal, o título do seu livro mais vendido até hoje.
Em 1979, voltou ao Brasil e encontrou um país em ebulição, a anistia trazendo os exilados de volta, presos políticos sendo libertados. Seus colegas não entenderam quando decidiu largar o emprego do BID e voltar para casa. Cristovam saiu do BID para entrar para a História. Literalmente.
Foi dar aulas na UnB e acabou virando reitor da universidade. Sucedeu a José Carlos de Almeida Azevedo, conhecido como reitor da ditadura. Fez uma gestão inovadora, sem perder o foco e a fé na educação libertadora. Sempre praticou a política em altíssimo nível e a maior dificuldade dos seus adversários sempre foi conseguir brigar com ele.
Em 1994, Cristovam foi eleito governador de Brasília pelo PT. Seu coração batia pelo PDT de Leonel Brizola (1922-2004), mas a falta de estrutura partidária o empurrou para o PT. Duas iniciativas marcaram sua administração: a Bolsa Escola, cuja condição era a de os pais manterem os filhos na escola, e a faixa de pedestres, até hoje respeitada por todos, orgulho e símbolo de civilidade.
Tentou a reeleição em 1998 e perdeu para Joaquim Roriz (1936-2018). Errou o tom no último debate. Foi como Zico naquele pênalti na Copa de 1986. Chutou e o francês agarrou. Ficou 4 anos sem mandato. Em 2002, se elegeu senador. Ministro meteórico da Educação de Lula, acabou demitido por telefone, sem justa causa. Candidato a presidente pelo PDT em 2006, terminou em 4º lugar, atrás de Heloisa Helena do Psol.
Votei nele, como em todas as vezes em que concorreu. Assim como votei em Darcy Ribeiro e Brizola, porque Cristovam sempre foi o candidato do anti-pobrismo, da educação libertadora, preocupado com a escola de base. Igual Darcy.
Num país onde a miséria se transformou em ativo político, lutar contra o pobrismo é ser a favor de uma prosperidade que não se resume ao material, mas acima de tudo é moral e ética. Como ensina Cristovam, o futuro de um país tem a cara da escola do presente. Uma verdade inconveniente para a maioria dos políticos.
“Retrato de uma década perdida“, publicado em 2017, é um símbolo da luta contra o pobrismo. São 71 páginas que pesam uma tonelada. Em fevereiro de 2005 a Folha de S.Paulo publicou uma foto do presidente Lula com crianças no interior de Pernambuco. Lula está separado das crianças por uma cerca de arame farpado. Cristovam viu a foto, voou lá, identificou cada um dos meninos, suas histórias. Escreveu uma carta a Lula dizendo que o presidente tinha nas mãos a oportunidade de mudar esta dura realidade e ofereceu uma receita de escola capaz de tirar aqueles garotos da miséria. Lula nunca respondeu.
O tempo passou e 10 anos depois Cristovam volta para rever as crianças. Corria o ano de 2015. O drama era o mesmo desde sempre: a única menina da foto, Taciana, agora com 16 anos, já era mãe. Um foi preso, o outro assassinado. Nenhum sabia ler, escrever ou fazer contas. Cristovam escreveu para a presidente Dilma Rousseff relatando a situação e propondo medidas como a federalização do ensino básico. Dilma ignorou. Só restou a ele escrever o livro.
Na próxima terça-feira (20), Cristovam completará 80 anos. Vida rica, limpa, generosa, complexa, jardim de sabedoria. Vida tão vivida, intensa, imensa como o painel de Cícero Dias, 15 metros de largura, pintado em papel de pão, humilde e valioso, incômodo, censurado, escandaloso e perfeito, retrato de tudo e de todos, cujo nome resume sua essência: Eu vi o mundo… Ele começava no Recife. O recifense Cristovam viu, ouviu, escreveu e nos deu de presente este mundão de sabedoria graças a dona Benedita, seu Durval e as estantes de livros da casinha de Afogados.
*Jornalista
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