Por Flávio Chaves*
Em Gaza, uma criança acorda e não há nada. Nem pão, nem teto, nem cama. A vida recomeça todo dia sem promessas. Há apenas o estômago vazio que geme em silêncio, o olhar perdido da mãe que já não tem mais lágrimas, e a poeira impregnada no corpo de quem não tem onde repousar. Eles dizem que estão voltando para casa. Mas que casa? Aquilo que foi lar virou escombros, virou ausência, virou desespero. Regressam para o nada. Caminham como quem carrega os olhos dentro de uma mala sem destino.
Ao mesmo tempo, líderes mundiais cruzam os céus em jatinhos confortáveis, protegidos por protocolos e seguranças, para se encontrarem em salões refrigerados e luxuosos. Ali, entre taças de cristal e cafés importados, declaram estar reunidos para debater soluções globais sobre alimentação. Falam de programas, fundos internacionais, metas sustentáveis. E enquanto isso, um menino em Rafah segura a barriga com as duas mãos, não por fome de futuro, mas por fome de agora.
Leia maisInventaram um termo técnico para disfarçar o que é brutal: crise alimentar. Um eufemismo conveniente, que suaviza o drama e dilui a responsabilidade. A fome, no entanto, não é uma crise. É um crime. É um projeto de exclusão. Ela é fabricada com precisão cirúrgica, por aqueles que controlam os acessos, os recursos e os silêncios. A fome é instrumento de guerra. É tática de dominação. É punição coletiva.
No continente africano, em campos de refugiados no Oriente Médio, nas comunidades esquecidas da América Latina, milhões não sabem se terão uma próxima refeição. O pão é uma miragem. A água potável, um luxo inalcançável. O mundo produz alimento suficiente para todos, mas uma parte come demais enquanto a outra morre esperando. A balança é cruel. E os discursos não a equilibram.
O economista senegalês Jacques Diouf, ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), disse com clareza: a fome não é uma questão de caridade, é uma questão de justiça. E justiça não se resolve em cúpulas. Justiça exige ação, redistribuição, coragem de romper os pactos que sustentam a desigualdade.
A cada conferência global sobre alimentação, milhões são gastos com passagens, hospedagens, segurança e logística. O valor investido em uma única viagem de um chefe de Estado seria suficiente para alimentar milhares de famílias por semanas. Mas em vez de saciar a fome, alimentam o espetáculo. Fingem resolver enquanto sustentam a estrutura que permite o sofrimento. É uma encenação dispendiosa, montada sobre os ossos de quem já não tem força para gritar.
A mídia, por sua vez, muitas vezes opta por uma cobertura superficial, tímida, editada. Dizem que os palestinos estão voltando para casa, mas não dizem que a casa não existe mais. Repetem os boletins diplomáticos, mas não mostram a mãe que amamenta sem leite, o pai que procura alimento entre ruínas, a criança que tropeça em corpos. Transformam a catástrofe em estatística, a dor em número, a barbárie em nota de rodapé.
E então, o mundo gira, as bolsas de valores se movem, os relatórios são publicados, os aplausos ecoam. Enquanto isso, em Gaza, pessoas caminham em silêncio. O rosto coberto de pó, os pés feridos, a alma suspensa no ar, como quem já deixou de existir. Cada um carrega o peso do próprio desaparecimento. Cada passo é um lamento calado. Cada respiração, um milagre de resistência.
É preciso repetir sem pudor: quem não alimenta, governa a mentira. Governar é garantir o pão, é proteger o corpo, é cuidar da vida. Quem finge que governa, mas permite que crianças morram de fome, não governa: administra o abandono.
A filósofa indiana Vandana Shiva, incansável defensora da justiça alimentar, disse que “a fome é uma consequência da violência — contra a terra, contra os agricultores, contra os povos.” E essa violência hoje se espalha como sombra pelas vielas de Gaza, pelos campos queimados da África, pelas favelas invisíveis do Brasil.
É de Adlai Stevenson, ex-embaixador americano na ONU, a sentença que resume o abismo em que estamos: um homem faminto não é um homem livre. A fome é a mais cruel das prisões, porque sequestra o corpo e esvazia a esperança. Quem tem fome não pensa em amanhã. Pensa em sobreviver até a próxima hora.
Não chamem de crise o que é massacre. Não chamem de retorno o que é exílio permanente. Não chamem de ajuda o que é vitrine política. Se não há coragem para mudar, que ao menos haja vergonha. E se não há vergonha, que ao menos haja silêncio.
Mas para os que ainda sentem, que escrevam. Que falem. Que gritem. Que denunciem. Porque a mesa continua vazia. E os discursos continuam cheios.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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