Por Mariana Teles*
A Paraíba tem, hoje, tudo para transformar a caprinocultura e os queijos artesanais em motor de desenvolvimento: tradição, conhecimento acumulado, uma planta produtiva em ebulição no Cariri e um recurso estratégico para o semiárido, a palma forrageira. Mas nada disso basta quando a engrenagem estatal se converte em obstáculo, por meio de um emaranhado de normas que pouco dialoga com a realidade da caatinga. Quando a regulação perde o equilíbrio, o desenvolvimento fica pelo caminho.
Nos últimos anos, a cadeia do leite de cabra e dos queijos artesanais passou a viver cercada por leis, decretos, portarias e instruções normativas. Esse movimento contrasta com a vida real do setor: feiras, simpósios, cooperativas, produtores investindo em qualidade e identidade territorial. Em tese, a regulamentação deveria significar maior segurança sanitária, valor agregado e novos mercados. Na prática, porém, o entusiasmo regulatório vem se transformando em um labirinto que o pequeno e o médio produtor raramente conseguem atravessar.
Leia maisA contradição ganha rosto quando fiscalizações suspendem a venda de insumos essenciais, como a palma forrageira, justamente em propriedades reconhecidas pela excelência técnica e pela contribuição ao semiárido, caso da histórica Fazenda Carnaúba, em Taperoá. Em nome de uma regulação “correta”, bloqueia-se a base material que sustenta rebanhos, laticínios, empregos e a permanência de famílias no campo. Sem palma, não há rebanho; sem rebanho, não há leite; sem leite, não há queijo – nem renda, nem futuro no sertão.
Há décadas, economistas e juristas repetem que instituições não são neutras: podem impulsionar ou travar o desenvolvimento. Em linguagem simples, as regras do jogo podem abrir caminhos ou fechar porteiras. Na teoria da regulação, fala-se em “modo de regulação” para descrever o conjunto de leis, rotinas burocráticas e formas de intervenção do Estado que dão estabilidade – ou instabilidade – à economia. Quando esse modo conversa com a realidade produtiva, convida ao investimento. Quando ignora o chão onde pisa, produz incerteza, desorganiza cadeias e desanima quem insiste em produzir.
No semiárido paraibano, a sensação é justamente essa: vivemos sob um sistema regulatório que não conhece o território, que não sabe o que é ver um rebanho inteiro depender de um roçado de palma. As normas tratam uma queijaria familiar como se fosse uma grande planta industrial; fiscalizam a venda de palma como se fosse luxo, e não a base da segurança alimentar dos animais. Quando faltar pasto para o gado e comida na mesa, qual regulação vai nos salvar da fome?
Sobre a palma se ergue um patrimônio de pesquisa, programas públicos de distribuição de mudas, experiências de manejo adaptadas ao bioma. Fazendas como a Carnaúba se tornaram referência justamente por provar que o semiárido pode ser espaço de alta produtividade quando se combinam tecnologia, manejo e respeito à caatinga. É por isso que soa tão absurdo ver a venda de palma suspensa por ação fiscal em uma propriedade com esse perfil. Não se trata de defender “vale-tudo” sanitário, mas de perguntar: qual o critério? Qual a leitura real de risco? Que impacto econômico e social é considerado antes de interromper o fornecimento de um insumo essencial para toda uma cadeia?
A discussão sobre regulação costuma ser travada em linguagem fria, cheia de termos técnicos. Mas por trás de cada exigência desproporcional há um custo humano que não aparece na planilha. É a produtora que desiste de registrar sua queijaria porque a reforma custa mais que a casa onde mora. É o jovem que abandona o campo porque acha mais fácil enfrentar a precariedade urbana do que a maratona dos carimbos. É o agricultor que vê a palma brotar verde e, ao mesmo tempo, vê a lei cair seca sobre sua cabeça.
O Direito, quando se afasta da realidade, vira língua estrangeira. A Constituição fala em reduzir desigualdades regionais, proteger a cultura, apoiar a agricultura familiar. Mas, na ponta, parte da regulação aplicada ao semiárido faz o contrário: aprofunda desigualdades, desvaloriza saberes tradicionais e encarece a sobrevivência de quem insiste em produzir em condições adversas. Em vez de Estado parceiro, um Estado ameaça. Em vez de fiscalização pedagógica, inspeção punitiva. Em vez de caminho para a cidadania produtiva, uma fila de exigências que o pequeno raramente completa.
Não é sobre ter mais ou menos lei. É sobre ter lei a serviço de um projeto. Em alimentos, a regulação é indispensável. A questão é: a quem ela serve? Há duas maneiras de regular: contra o território ou a favor dele.
Regular contra o território é copiar modelos pensados para outras realidades, aplicar parâmetros industriais à agroindústria familiar, tratar o produtor como suspeito permanente, empilhar exigências sem oferecer caminhos de transição. É transformar a lei em cerca alta que separa quem tem estrutura de quem só tem coragem e trabalho.
Regular a favor do território é olhar o mapa do sertão, não apenas o mapa eleitoral. É reconhecer que a mesma norma que protege o consumidor pode, se mal desenhada, condenar o rebanho à escassez. É entender que a regulação precisa deixar de se levar pelos currais de voto para conhecer os currais que alimentam o povo.
Se quisermos inverter essa lógica, alguns passos são urgentes. Rever normas à luz do risco, e não do formalismo: concentrar o esforço regulatório onde o perigo sanitário é real e aliviar a carga burocrática onde o impacto é menor. Harmonizar entendimentos entre Ministério, órgãos estaduais e serviços municipais, para que o produtor não seja refém da interpretação solitária de um fiscal. Tratar selos e certificações como portas de entrada, não como muros de exclusão: com prazos de transição, assistência técnica e crédito para adequação.
No fim, a regulação é uma escolha sobre que país queremos ser. No semiárido paraibano, essa escolha passa pelos currais: de palma, de cabras e de sonhos que resistem ao sol forte e à chuva pouca. Quando a lei se afasta desse chão, perde o sentido. Pode produzir relatórios perfeitos, mas deixará um rastro de fazendas vazias, queijarias fechadas e currículos impressos para tentar a sorte longe dali.
Se queremos um Nordeste que se desenvolva com seus próprios recursos, respeitando sua identidade e sua inteligência produtiva, precisamos recolocar a lei no lugar certo: não como muro, mas como ponte; não como ameaça, mas como instrumento de vida. Entre os currais de voto e os currais de palma, já passou da hora de escolher de que lado a regulação vai ficar. Se continuar servindo mais à lógica dos palanques do que à lógica da roça, seguiremos produzindo, com selo de qualidade e tudo, o nosso velho conhecido produto: o subdesenvolvimento.
*Poetisa e advogada especialista em Direito Administrativo pelo IDP e em Gestão e Governança Pública pela PUC-RS. Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo Unipê
Leia menos
















