Por Inácio Feitosa*
A aplicação de multas de trânsito no Brasil deixou de ser percebida, por grande parte da população, como um instrumento pedagógico de proteção à vida. Em muitos contextos, passou a ser vista como prática rotineira, automatizada e, não raramente, abusiva. Esse desgaste de legitimidade não nasce do acaso. Ele decorre, em grande medida, do afastamento progressivo entre o exercício do poder de polícia e as exigências legais que deveriam sustentá-lo, sobretudo no que diz respeito à capacitação obrigatória das autoridades e agentes de trânsito.
É preciso afirmar com clareza: multar não é um ato simples, nem neutro, nem automático. Multar é exercer poder de polícia administrativa. Trata-se de uma das formas mais intensas de atuação do Estado sobre o cidadão, pois restringe direitos, impõe sanções patrimoniais e inaugura processos administrativos sancionadores. Por essa razão, o ordenamento jurídico não concede liberdade irrestrita a quem fiscaliza. Ao contrário, exige competência, forma, finalidade pública, devido processo legal e, de modo central, qualificação técnica adequada.
Leia maisO Código de Trânsito Brasileiro estruturou o Sistema Nacional de Trânsito exatamente para evitar improvisos. União, estados, Distrito Federal e municípios só podem multar dentro da circunscrição legal que lhes foi atribuída. Não basta a vontade do gestor, a conveniência arrecadatória ou a pressão por resultados. A competência é condição de validade do ato. Fora dela, a multa é juridicamente nula.
Mas a competência do órgão não basta. O próprio agente que lavra o auto de infração precisa estar regularmente investido, formalmente designado e tecnicamente capacitado. Não é o uniforme, o colete refletivo ou o equipamento eletrônico que legitima a autuação. O que legitima a multa é a conjugação de vínculo funcional válido, atribuição legal e formação adequada para o exercício do poder de polícia.
É nesse ponto que a discussão sobre capacitação deixa de ser periférica e passa a ser estrutural. A formação do agente de trânsito não é cortesia administrativa nem política interna facultativa. Trata-se de exigência normativa expressa. A Portaria da Secretaria Nacional de Trânsito nº 966, de 2022, ao estabelecer o Curso de Agente de Trânsito, com carga horária mínima, conteúdo obrigatório e atualização periódica, não criou uma burocracia artificial. Apenas deu concretude ao próprio Código de Trânsito, que atribui ao órgão máximo executivo da União o dever de formar e treinar quem fiscaliza.
Sem capacitação válida e atualizada, o agente não exerce legitimamente o poder de polícia. E sem exercício legítimo do poder de polícia, não há sanção válida. Essa relação é direta, causal e jurídica. Não se trata de proteger infratores, mas de proteger o próprio Estado de Direito contra a banalização da punição.
O Conselho Nacional de Trânsito também não atua por acaso. Suas resoluções e o Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito vinculam a atuação dos agentes e delimitam procedimentos, enquadramentos e critérios técnicos. A fiscalização não é espaço para improviso, criatividade punitiva ou metas informais de autuação. Quando esses parâmetros são ignorados, a multa deixa de ser instrumento de política pública e passa a ser expressão de abuso administrativo.
Some-se a isso o devido processo legal. Multa sem auto válido, sem notificação regular, sem possibilidade real de defesa e recurso não é sanção legítima, é violação de garantias básicas. A jurisprudência consolidada dos tribunais brasileiros não tem sido indulgente com esse tipo de irregularidade, justamente porque o processo administrativo é parte indissociável da validade da penalidade.
Apesar de existirem corregedorias, juntas administrativas, conselhos estaduais, tribunais de contas, Ministério Público e Judiciário, o que se observa na prática é um déficit crônico de transparência. O cidadão raramente sabe quem é a autoridade de trânsito, qual a formação do agente que o autuou ou se a capacitação exigida está em dia. Onde a informação não circula, a confiança se rompe e a fiscalização perde legitimidade social.
Verificar a legalidade da multa não é ato de rebeldia, mas exercício de cidadania. Questionar competência, capacitação, designação e procedimento é parte do controle democrático da Administração Pública. Recorrer não é favor concedido pelo Estado, é garantia constitucional.
A capacitação obrigatória das autoridades e agentes de trânsito não é detalhe técnico nem exigência acessória. É elemento estrutural da legalidade das multas. Onde ela inexiste, é insuficiente ou está vencida, o poder de polícia se deslegitima e a sanção não deve subsistir. Um sistema de trânsito só se sustenta quando pune com técnica, educa com transparência e respeita os limites jurídicos do próprio poder de polícia.
*Advogado, escritor, fundador e diretor do Instituto IGEDUC
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