Por Dorrit Harazim
Do jornal O Globo
Tem sido difícil pinçar algo apaziguante sobre o amanhã à nossa espera — o futuro chegou muito antes de 2025 se esvair, e coisa boa não é. Veio a galope, sem pruridos de atropelar a cosmologia anterior. Para o veterano analista Alastair Crooke, ex-agente do serviço de inteligência britânico MI6 e fundador do Fórum de Conflitos com sede em Beirute, o pensamento populista conservador ocidental já conseguiu criar raízes como algo mais bruto, coercivo e radical.
— Kaputt o modelo de uma ordem internacional baseada em regras (se é que alguma vez existiu para além da narrativa) — escreve Crooke no ensaio “Uma nova era de domínio coercivo”.
A guerra pelo poder futuro já é travada — sem regras, sem direito, poucos limites e em ostensivo desdém pela Carta das Nações Unidas. Segundo Crooke, a tática adotada pelos aspirantes a donos do futuro é deixar seus adversários atônitos e imobilizados, figuras congeladas no tempo e na ação. São tempos de transgressão deliberada com o propósito de chocar, mover-se depressa e, no caminho, destruir a (des)ordem anterior. Os Estados Unidos de Donald Trump e o Israel de Benjamin Netanyahu acreditam ser a vanguarda da derrocada do liberalismo global e de suas ilusões.
Leia maisO ensaísta político Giuliano da Empoli, autor do estupendo romance “Mago do Kremlin”, inspirado na história real da eminência parda de Putin, Vladislav Surkov, pisa mais fundo na sua visão do nosso amanhã. Em novo livro intitulado “The hour of the predator: encounters with the autocrats” (ainda sem edição brasileira), sai de cena toda uma classe política de tecnocratas (tanto de direita como de esquerda), mais ou menos indistinguíveis entre si, que governavam seus países com base em princípios de democracia liberal, em conformidade com as regras de mercado e modulados por algumas considerações sociais, formando o Consenso de Davos. Na pena cortante de Da Empoli, o conchavo anual realizado na Suíça entra para a História como lugar onde a política se reduzia a uma competição entre apresentações em PowerPoint, e o gesto mais transgressor que alguém podia ter era usar uma malha de gola alta preta em vez de camisa azul-clara à hora de bebericar.
As novas elites tecnológicas mundiais — os Musks, Zuckerbergs e Sam Altmans — nada têm em comum com os tecnocratas de Davos. A filosofia de vida desses barões da IA não se assenta na gestão da ordem existente, mas, pelo contrário, num desejo irreprimível de tudo chacoalhar. Ordem, prudência e respeito pelas regras são anátemas para quem chegou depressa à fama e fortuna, quebrando coisas, como dizia o lema original do Facebook.
No incendiário comício londrino que chocou o establishment britânico meses atrás, Elon Musk anunciou a “próxima chegada da violência” e conclamou a todos:
— Ou vocês reagem, ou morrem.
Seu ostensivo e inabalável apoio a movimentos de extrema direita, dos bolsonaristas no Brasil à AfD na Alemanha — não se deve apenas a excentricidades de um bilionário nascido na África do Sul. Segundo Da Empoli, ele revela algo mais fundamental, que ultrapassa em muito as preferências de um único oligarca tecnológico. As palavras de Musk são, diz ele, apenas a ponta de algo muito mais profundo: uma batalha entre elites de poder pelo controle do futuro.
Por natureza e trajetória, os senhores da alta tecnologia atual têm mais em comum com líderes nacional-populistas de extrema direita — os Trumps, Mileis, Bolsonaros e chefes de movimentos semelhantes europeus — que com os políticos que há décadas governaram as democracias liberais ocidentais. Tal como os primeiros, são quase sempre personagens excêntricos que tiveram de violar regras para prosperar. E, como eles, também desconfiam das elites, dos saberes de especialistas, de tudo o que encarna o Velho Mundo. Também estão convencidos de que podem moldar a realidade de acordo com seus desígnios de que a viralidade (e, de lambuja, também a virilidade) prevalece sobre a verdade, a velocidade é posta a serviço do mais forte. Um sólido desprezo por servidores públicos e pelo Estado Democrático de Direito é outro denominador comum.
Tal abordagem revela-se sedutora para uma opinião pública inclinada a considerar o sistema institucional cego, surdo e mudo às aflições populares e convencida de que que votar neste ou naquele político faz pouca diferença para a vida como ela é. Da Empoli teme que grandes e pequenas democracias liberais corram o risco de ser varridas como as pequenas repúblicas italianas do início do século XVI.
“Se, na teologia, um milagre corresponde à intervenção direta de Deus, que contorna as regras normais da existência terrena para produzir um acontecimento extraordinário, a lógica de Trump e de outros líderes nacional-populistas é semelhante”, escreve ele. “Quebrar as regras (e, muitas vezes, as próprias leis) para intervir nos problemas que afligem seus eleitores: essa é a promessa do milagre político.”
Xô, melhor não acreditar em milagres.
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