Por Marcelo Tognozzi
Colunista do Poder360
Quando John Lindsay venceu as eleições para prefeito de Nova Iorque, em 1965, era tido e havido como “renovado, enquanto os outros estão cansados”. Alto, pinta de galã, protestante e rico, Lindsay foi eleito aos 44 anos como integrante de uma ala liberal do Partido Republicano liderada por Nelson Rockefeller, prometendo uma cidade mais humana, o que ele chamou de democracia urbana. Mais tarde, Lindsay deixaria o Partido Republicado para virar democrata.
Nova Iorque tem 401 anos, foi fundada em 1624 e seus primeiros moradores foram 23 judeus fugidos do Recife por causa da Inquisição, conforme conta Maria Luiz Tucci Carneiro em seu livro “Antissemitismo nas Américas” (EdiUSP 2007). Das 16 naus que partiram do Recife naquele ano, uma foi saqueada na Jamaica e outra com o grupo de judeus chegou praticamente com a roupa do corpo no que seria Nova Iorque.
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Umbigo do mundo, a cidade tem uma característica: é indomável. Até hoje ninguém conseguiu domesticar Nova Iorque, metrópole que não perdoa idealistas despreparados. John Lindsay fez uma campanha despertando a esperança de uma metrópole mais justa, integrada e humana. No seu primeiro dia de trabalho, uma greve paralisou os transportes públicos e Lindsay foi trabalhar a pé e disse que estava se divertindo.
Com o passar do tempo, seu governo se transformou em um caso clássico de como uma visão progressista pode naufragar quando não sabe como lidar com as forças de poder urbano. Lindsay enfrentou a polícia, os sindicatos municipais, a máquina política estadual e a queda da receita sem ter construído, antes, uma estrutura organizativa capaz de sustentar sua agenda. Pouco a pouco foi se isolando, apedrejado pela direita, abandonado pela esquerda, se revelando um administrador incompetente.
Zohran Mamdani, o muçulmano socialista de 34 anos, emerge como líder capaz de reverter esse ciclo. Diferentemente de Lindsay, ele não se apresenta como um liberal moral, mas como um organizador socialista: seu discurso não se apoia em esperança abstrata, mas em grupos sociais como inquilinos, trabalhadores de serviços, cooperativas comunitárias e sindicatos renovados.
No entanto, é justamente aí que mora o perigo: se Mamdani acreditar que pode governar olhando só para seus apoiadores, pode cair na mesma armadilha que destruiu Lindsay.
A cidade não se move apenas pela mobilização popular; ela é regida por estruturas de poder sedimentadas, especialmente a polícia, o mercado imobiliário e o aparato fiscal no qual Wall Street e Albany são mais fortes do que as necessidades cotidianas dos moradores. É isso que faz de Nova Iorque a capital financeira do mundo. Será que os norte-americanos querem abrir mão deste poder? Será que cansaram de ser poderosos? Ou será possível o poder econômico conviver com o social?
Lindsay acreditava que a vontade política, empatia pública e compromisso moral com a justiça seriam suficientes para transformar a cidade. Foi tragado pela realidade: Nova Iorque mergulhou numa crise econômica, fuga fiscal e crescente segregação de espaços, enquanto o prefeito insistia em expandir serviços públicos sem o devido lastro. Uma gestão incompetente, mais ou menos como a que vimos no Rio de Janeiro quando Saturnino Braga ocupou a prefeitura (1986-1989).
Mamdani precisará reformar profundamente a gestão financeira, taxando imóveis vazios, encerrando subsídios às incorporadoras, reduzindo o poder político do mercado imobiliário e revisando o financiamento do transporte. Se não souber como fazer isso, corre o risco de repetir os erros de Lindsay 60 anos depois.
A diferença é que agora o tecido urbano está mais frágil, a desigualdade é mais profunda e o capital financeiro muito mais enraizado que no fim dos anos 1960 e início dos anos 1970. Um colapso fiscal numa administração declaradamente socialista pode ter consequências políticas devastadoras, não apenas para Nova Iorque, mas para qualquer possibilidade futura de municipalismo progressista nos Estados Unidos.
Há também o conflito com a polícia nova-iorquina. Lindsay tentou enfrentar a polícia por meio de gestos simbólicos, proibindo repressão dura durante tensões raciais. No embate, a polícia levou a melhor, trabalhando dia e noite para destruir seu governo.
Se Mamdani pretende alterar o modelo policial da cidade, não poderá fazê-lo por meio de apelos morais ou transparência administrativa. Terá de ocupar a máquina policial por dentro, num método gramsciano, reconstruindo a cadeia de comando, os mecanismos disciplinares e o controle civil. Se vai conseguir ou não é o que veremos.
Não podemos esquecer que as consequências do desastroso governo Lindsay foi a decadência de Nova Iorque, que acabou se tornando uma das cidades mais violentas do mundo até que 20 anos depois Rudy Giuliani assumiu a prefeitura e implantou a tolerância zero.
O risco não é Mamdani repetir o idealismo de Lindsay, mas subestimar o poder do capital financeiro, das corporações imobiliárias e das forças de segurança. Lindsay acreditou que podia governar pela autoridade moral. Mamdani pode ser enfeitiçado pela crença de ter sido ungido pela legitimidade popular. Um jovem inexperiente como ele terá de conviver cotidianamente com todo tipo de risco e armadilha e ser esperto o suficiente para escapar deles.
Nova York é uma cidade onde projetos políticos não morrem sozinhos: deixam escombros. Mamdani precisará ser extremamente competente para fazer um governo capaz de cumprir promessas como congelamento de aluguéis, transporte público gratuito e serviço público de saúde para as crianças. Ele criou uma expectativa gigante. Não corresponder, pode provocar uma decepção gigante.
Se não for capaz de caminhar no fio da navalha, entre cumprir as promessas e resistir aos ataques da oposição, não terminará o mandato. Mesmo cometendo erros em série, Lindsay conseguiu ser reeleito em 1969, o que pode ser um alento para Mamdani. Mas Lindsay saiu escorraçado, com sua aprovação em 1972 chegando a irrisórios 9%. Mamdani corre o risco de ser lembrado não como o Lindsay que deu certo, mas como outro idealista tragado pelo moedor nova-iorquino.
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