Por Maurício Rands*
A ordem global surgida depois da 2a guerra foi hegemonizada pelos EUA. Inclusive na economia e nas finanças, onde o sistema de Bretton Woods foi construído sob a dominância do dólar. Embora o poder americano tenha se imposto desproporcionalmente, reconheciam-se instituições e objetivos multilaterais, como ONU, OMC, OMS, UNCTAD, FMI e outras.
Agora, presenciamos mudanças profundas advindas do poder concentrado das grandes plataformas digitais, do aumento da concentração de renda e da estagnação do crescimento nos países desenvolvidos. Surgiu com força um populismo autoritário que captura ressentimentos dos que foram deixados para trás. Em toda parte, ascenderam movimentos com ideologias supremacistas raciais, ultraconservadoras e ultranacionalistas. A velha ordem vai dando sinais de esgotamento. Alguns são eloquentes.
Leia maisA relação entre EUA e Índia nos últimos 20 anos foi vista por republicanos e democratas como estratégica para que a China não assumisse um domínio incontrastável na região. Como Donald Trump e Narendra Modi chegaram ao poder na onda do populismo autoritário de direita, pensava-se que as relações se reforçariam. Mas o americano ficou ressentido porque a Índia não endossou a sua indicação ao Prêmio Nobel da Paz feita pelo Paquistão depois do fim das escaramuças entre os dois países. E aí impôs um tarifaço de 50% em cima da Índia.
Os europeus, com a guerra da Ucrânia dentro do seu continente, perceberam que tinham de se defender por si próprios quando os EUA reduziram o financiamento da OTAN. A Alemanha reconheceu que o cenário é outro. Vai atingir a meta da OTAN de gastar 3,5% do seu PIB em defesa até 2029.
O massacre imposto por Israel aos palestinos está sendo bancado pelos EUA, que anualmente fornecem US$ 3,8 bilhões para os gastos militares de Israel. A reação da maioria das potências ocidentais não passou de meros gestos simbólicos. Adotados tardiamente, quando os crimes de guerra do governo de Netanyahu já mataram mais de 60 mil civis, destruíram a infraestrutura do território, usaram a fome como arma de guerra, assassinaram jornalistas, funcionários internacionais, além de médicos e paramédicos que arriscaram suas vidas para oferecer ajuda humanitária a crianças e demais civis massacrados.
Como bem demonstrou o escritor Pankaj Mishra em seu livro After Gaza (Penguin, 2025), que está impactando os formadores de opinião europeus e americanos. Seu alerta é de que o Sionismo soube construir uma narrativa de que seriam antissemitas todos os que não concordassem com os horrores praticados pelo atual governo sionista de Israel. E que tudo seria permitido para que “nunca mais” voltassem a ocorrer os crimes do holocausto de que foi vítima o povo judeu. Pankaj vai além ao fazer um alerta para a perda da imagem e do softpower do Ocidente em face da leniência com o Sionismo de Israel. Mostra que bilhões de pessoas têm visto as cenas transmitidas em tempo real pelas vítimas em Gaza. Algo diferente de outros massacres como os cometidos por Hitler, Stalin e Mao. Ele mostra que parte da opinião pública ocidental está indignada.
Como os jovens em algumas das melhores universidades ocidentais, como Harvard, Columbia e Oxford, que arriscam suas carreiras acadêmicas e profissionais ao denunciarem a complacência das potências ocidentais diante do massacre dos palestinos. E que ampliaram o brado “Nunca mais!”, que todos nós brandimos em solidariedade às vítimas do holocausto, para “Nunca mais, em lugar nenhum!”. Pankaj registra o desapontamento dos povos dos países que recentemente se libertaram dos colonialismos europeu e americano. Assim como de povos da Ásia, África e Américas. Isso não é pouco desgaste para o Ocidente.
Não surpreendeu, portanto, a cena da semana passada, em que os líderes da China, Índia, Rússia e outros países reuniram-se no que foi interpretado como um passo na construção de uma nova arquitetura geopolítica mundial. Todos estão repensando estrategicamente a ordem global. Desta feita sem a supremacia dos EUA. Que deixaram de ser vistos como parceiros confiáveis. Inclusive com a criação de um novo banco mundial de desenvolvimento para financiar infraestrutura e comércio, com mecanismos alternativos ao dólar. E apontando para uma nova arquitetura financeira global que desta vez não está sendo construída em Washignton.
Essa mudança de expectativas em relação aos americanos está na base da associação de potências como China, Rússia e Índia, que até há pouco cultuavam diferenças entre si. Como lembra Gideon Rachman (Financial Times, 6.9.2025), a resposta óbvia dos EUA seria fortalecer os laços com os aliados ocidentais. Ao invés de fortalecer sua rede de aliados e de atrair outros países ainda não alinhados, Trump ataca-os com tarifas protecionistas. Ou com ameaças à soberania dos seus territórios (Dinamarca, Canadá) ou de suas instituições internas (Brasil).
*Advogado formado pela FDR da UFPE, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford
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