Por Flávio Chaves*
Havia dias em que ele não sabia bem onde estava, não por falta de localização, pois o corpo sabia do chão que pisava, das paredes que o cercavam, do teto que se mantinha suspenso sobre a cabeça. Mas dentro, em outro lugar onde os mapas não alcançam, havia um desvio, uma ausência de direção que lhe apagava o norte, como se o compasso interno houvesse se partido silenciosamente numa madrugada qualquer, enquanto dormia.
Era nesses dias que a solidão, aquela que não se anuncia com ausências visíveis, mas se instala como umidade antiga nas paredes da alma, tomava conta dos seus silêncios. Não era a solidão do corpo, essa é suportável, às vezes até desejável, mas aquela outra, mais lenta e mais funda, que escava por dentro, fazendo morada sem aviso, como um hóspede indesejado que já trouxe as malas e se espalhou nos cômodos do coração.
Leia maisEle andava assim, como quem carrega um luto sem morto, uma dor sem ferida, um choro sem lágrimas. Porque o pranto, embora presente, não descia pelo rosto, não se fazia visível, preferia escorrer por dentro, em veios mudos, como se tivesse vergonha de existir. O peito doía, não como um impacto, mas como um aperto contínuo, como se algo interno o pressionasse para fora, sem urgência, mas com insistência, dia após dia.
Era uma tristeza sem nome, um nó que nem as palavras desfaziam, nem o sono, nem os abraços que já não estavam ali. Às vezes pensava em dormir, noutras resistia ao cansaço como quem vigia um território em guerra, achando que a vigília, mesmo infrutífera, seria uma forma de permanecer, de não se entregar por completo ao naufrágio. A verdade, pensava baixinho, é que não sabia o que fazer com tanto sentir.
Não sei, amor, ele dizia para ninguém, ou talvez para um eco que vivia dentro de si, uma voz antiga que ainda respondia, mesmo sem presença. Era uma conversa com a ausência, um monólogo com o vácuo, uma tentativa de diálogo com a dor, essa companheira silenciosa que se assentara como um móvel antigo num canto escuro da alma. Um daqueles que ninguém ousa mover, nem doar, nem destruir, porque dentro dele há algo que já foi, mas que ainda pulsa como lembrança mal cicatrizada.
E quanto mais ele buscava um nome, um sentido, uma lógica, mais se perdia nesse labirinto feito de sentimentos sem alfabeto. A vida, às vezes, parecia cruel não pela força, mas pela sutileza com que esvaziava os dias, como se escorresse tempo pelas frestas, deixando para trás apenas perguntas que não encontravam repouso. E ele, sem bússola, tateava as próprias lágrimas invisíveis na tentativa de encontrar, quem sabe, um chão onde pudesse descansar a alma.
A dor era real, ainda que sem espetáculo. Não havia grito, nem drama, nem corte. Havia apenas esse peso mudo, esse silêncio espesso que o acompanhava como sombra. E mesmo assim, apesar do cansaço, ele seguia. Seguia porque havia, no fundo do não saber, uma forma de coragem que se manifesta apenas nos que caminham sem certeza alguma, apenas com a esperança remota de que, em algum ponto do caminho, o peso se transforme em palavra e o abismo, em poesia.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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