Por Míriam Leitão
Do Jornal O Globo
Réus podem mentir. E foi o que fizeram os réus do núcleo crucial da ação penal sobre a tentativa de golpe no Brasil. Uns mais que outros. Mas não apresentaram elementos para destruir o conjunto probatório que há contra eles, até porque confirmavam a acusação nos muitos atos falhos.
“Não tinha clima”, admitiu Jair Bolsonaro. “Não havia possibilidade”, afirmou o general Augusto Heleno. Não é que o golpe não foi tentado. Ele foi. Só não foi concluído. Os réus mentiram, omitiram, minimizaram atos, alteraram a natureza das reuniões, mas confirmaram todo o roteiro do que foi tentado ao fim do governo Bolsonaro, antes de decidirem “entubar” o resultado eleitoral.
Leia maisPor uma “fatalidade”, a minuta de um decreto de golpe de Estado foi parar junto às fotos da família do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Ele usou essa palavra para explicar o motivo de o documento estar ali. “Tinha muitos erros de português”, reclamou Torres. Ele só pôs reparos nos atentados ao vernáculo. Os maiores ataques do texto eram à democracia. Por que o então presidente Bolsonaro chamou os comandantes militares para uma reunião, por não ter se conformado com o resultado eleitoral? “É a minha formação militar”, disse Bolsonaro. Por que o general Braga Netto falou com uma apoiadora que “alguma coisa” aconteceria? “Eu me referia ao recurso do PL ao TSE”.
Os réus pediram desculpas. O ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira havia chamado o TSE de “inimigo”. Ele se penitenciou pelo que disse. Bolsonaro acusou três ministros do Supremo, numa reunião ministerial, de receberem milhões de dólares para fraudarem o resultado eleitoral. “Que indícios o senhor tem?”, perguntou Alexandre de Moraes. “Não tenho indício nenhum, me desculpe. Era uma reunião para não ser gravada. Eu não tive intenção de acusar de desvio de conduta dos senhores”, disse Bolsonaro. Só nessa resposta o ex-presidente já admitiu crime de calúnia e difamação.
Ao longo do interrogatório, ele repetiu essa bizarra explicação. O problema não foi uma reunião ministerial, de julho de 2022, em que todos estavam, por ação ou omissão, em conluio contra a democracia. O único problema foi a reunião ter sido gravada. Quem gravou? Ora, ele mesmo, Bolsonaro mandava gravar reuniões para depois fazer cortes para a internet, como admitiu ter feito em outros momentos.
O general Braga Netto escreveu em mensagens de WhatsApp que deveriam ser disparados ataques nas redes sociais contra seus colegas de farda. Por que escreveu isso? “Não me lembro”; “São mensagens fora do contexto”; “Não escrevi”. Estava lá escrito no seu próprio aplicativo de mensagens, mas o general nega.
Bolsonaro repetiu várias vezes que “nunca se falou em golpe”. A questão é que é preciso entender o que é golpe para ele. Segundo ele, “a questão de 64 que a esquerda chama de golpe teve o apoio do Congresso, da imprensa, da Igreja”. Ele preparava um golpe, só não o chamava pelo nome próprio.
Em momento do interrogatório que se fosse filme pareceria exagero, o ministro Moraes perguntou a Walter Braga Netto. “O senhor já foi preso, alguma vez”? “Eu estou preso, senhor presidente”. “Eu sei que o senhor está preso, eu que decretei”, responde Moraes. Esse diálogo meio non sense serve para iluminar uma questão importante do processo. Os advogados de Braga Netto pediram o relaxamento da prisão, dado que já se encerrou a fase de instrução penal. O ministro Alexandre deveria atender aos advogados. Seis meses de prisão preventiva e encerrado o interrogatório dos réus não faz mais sentido manter a prisão. Há fortes provas de que ele esteve presente no planejamento do golpe e é acusado de ter estado também na parte operacional, mas o motivo da preventiva não existe mais.
As cenas que o Brasil viu essa semana foram inéditas. Já houve militar preso como o marechal Hermes da Fonseca numa prisão relâmpago. O Marechal Rondon foi preso durante a Revolução de 1930. Mas a cena de três generais quatro estrelas, um almirante e um ex-presidente respondendo como réus por tentativa de golpe de Estado é inédita. O Brasil atravessa terreno desconhecido, portanto. Ao fim da ação penal 2668 quando eles forem para a prisão, o que parece ser a tendência mais provável, o país terá a chance de atravessar a fronteira para longe da sina de país sempre assombrado pelas armas dos militares.
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