Por Roberto Policarpo Fagundes*
De tempos em tempos, ressurge o mesmo discurso de que os servidores do Judiciário “descumprem o teto constitucional” e que haveria uma suposta distorção entre suas remunerações e as demais carreiras do serviço público. Trata-se de uma narrativa conveniente, mas profundamente desonesta — construída para gerar confusão, dividir os servidores e enfraquecer o serviço público.
É compreensível que a população se indigne com distorções salariais e privilégios injustificáveis. O cidadão quer ver justiça e eficiência — e tem razão nisso. O problema é que, ao tentar corrigir excessos pontuais com medidas genéricas, o Congresso pode acabar punindo justamente quem sustenta o funcionamento cotidiano do Estado.
Leia maisHá uma diferença clara entre membros do Judiciário (magistrados) e servidores (analistas, técnicos, oficiais, auxiliares, entre outros). São carreiras distintas, com regras, atribuições e remunerações distintas. Contudo, na hora de atacar o serviço público, todos são colocados no mesmo balaio — como se os salários exorbitantes atribuídos a poucos fossem a regra de toda uma categoria.
Essa distorção serve a um propósito político: criar a ideia de que “todo servidor é privilegiado”, apagando o fato de que a maioria cumpre rigorosamente o teto, trabalha com sobrecarga, enfrenta defasagem salarial e sustenta o funcionamento cotidiano da Justiça brasileira.
Exemplo disso são as proposições elaboradas pelo grupo de trabalho da Reforma Administrativa da Câmara dos Deputados. A primeira delas, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), contém nada menos do que 251 alterações à Carta Magna, sejam dispositivos em vigor, seja por meio da inclusão de novos artigos, incisos, parágrafos ou alíneas, dispositivos constitucionais autônomos ou regras de transição de nível constitucional.
O segundo é um Projeto de Lei Complementar que institui a Lei de Responsabilidade por Resultados da Administração Pública. Aborda temas como gestão de resultados, volume de políticas públicas, qualidade dos gastos públicos e evolução de desempenho dos servidores. Na prática, altera a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Código Tributário Nacional.
O terceiro é um Projeto de Lei Ordinária que institui o Marco Legal da Administração Pública brasileira. Trata de questões como planejamento de concursos, diagnósticos da força de trabalho, estruturação de carreiras e outros temas. Os dois projetos dependem, para sua validade, da aprovação da PEC.
À primeira vista, muitas dessas propostas parecem razoáveis — afinal, quem não quer um serviço público mais equilibrado e meritocrático? O problema está na forma como isso vem sendo apresentado: sem distinguir o que é privilégio do que é condição básica para o bom funcionamento das instituições.
Enquanto se discute o fim de licenças ou adicionais — pontos que poderiam ser debatidos com transparência e critérios —, o núcleo mais perigoso da reforma passa quase despercebido: o ataque à estabilidade e a criação de brechas para o apadrinhamento político. A estabilidade não é um privilégio — é um escudo contra a corrupção. É o que permite ao servidor agir com independência técnica e denunciar irregularidades sem medo de ser perseguido.
O enfraquecimento dessa garantia abre espaço para um tipo de nepotismo moderno, em que cargos são distribuídos por conveniência política, e não por mérito. O resultado é um Estado cada vez mais vulnerável a pressões de grupos privados e menos comprometido com o cidadão comum. Quando se desmontam as proteções institucionais sob o pretexto de “modernizar”, o que se está fazendo, de fato, é retirando os freios que impedem o abuso de poder e a captura do interesse público por interesses particulares.
O importante aqui é destacar que, nessa discussão sobre a reforma administrativa, existe uma tentativa de transformar os servidores, principalmente os do Judiciário, em vilões.
Ao usar o servidor do Judiciário como bode expiatório, certos setores tentam desviar o foco do verdadeiro problema: a captura do Estado por interesses que desejam mantê-lo frágil, deslegitimado e ineficiente. Esses grupos buscam ganhar a simpatia da população — que, com razão, é contrária a privilégios e medidas que burlem a Constituição —, mas fazem isso manipulando dados e confundindo a opinião pública.
A população quer resultados, e os servidores também. O que diferencia nossa defesa é o método: não se trata de proteger benefícios, mas de preservar a capacidade do Estado de entregar saúde, educação e Justiça de qualidade. Um servidor desmotivado, precarizado ou sujeito à pressão política não serve bem ao cidadão.
O objetivo é dividir os servidores e passar a ilusão de que o serviço público é inimigo da sociedade. Jogando-nos uns contra os outros, acabam favorecendo um projeto que não pretende modernizar o Estado, e sim precarizá-lo. O resultado dessa estratégia é perverso: um serviço público cada vez mais sucateado, distante e inacessível para o cidadão comum — justamente aquele que mais precisa do SUS, da escola pública, da aposentadoria e da Justiça.
A defesa do serviço público não é uma defesa corporativa — é uma defesa civilizatória. É o compromisso com um Estado capaz de garantir direitos, de servir ao povo com ética e competência, e de proteger a democracia contra os interesses de quem lucra com a desinformação e o desmonte institucional.
Se a intenção dos parlamentares fosse, de fato, corrigir distorções salariais ou tornar o serviço público mais justo, não precisariam dos projetos que hoje tramitam no Congresso. Bastaria cumprir a Constituição e aplicar de forma isonômica as regras já existentes — o que garantiria transparência e equilíbrio entre as carreiras.
Mas o que se vê é o contrário: projetos que buscam fatiar direitos, restringir concursos, vincular progressões a avaliações subjetivas e enfraquecer a estabilidade. Em nome de uma falsa “modernização”, querem abrir espaço para indicações políticas, terceirizações e precarização das funções essenciais do Estado.
Essas propostas — apresentadas sob o discurso de eficiência —, na verdade, ameaçam a autonomia técnica e o compromisso social do serviço público, transformando o Estado num balcão de interesses privados.
Defender o serviço público é defender o direito de cada brasileiro a ser atendido com dignidade. É lutar para que o Estado funcione melhor — com gestão, mérito e transparência —, sem se tornar refém de interesses privados. Essa é a reforma de que o Brasil precisa: a que valoriza quem serve e melhora a vida de quem é servido.
*Servidor do TRT da 10ª Região há mais de 30 anos
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