Por Zé Américo Silva*
A aprovação do PL da dosimetria expõe acordos nos porões do Senado, a aposta do Planalto no STF e um Parlamento que legisla para si mesmo, ignorando a vontade popular
O que se viu no Senado Federal, na votação do chamado PL da dosimetria, foi mais um retrato fiel do funcionamento dos porões da política brasileira. Longe da luz do debate público, governo e oposição firmaram um acordo pragmático, caro e politicamente tóxico: o líder do governo no Senado, Jaques Wagner, viabilizou a ida do projeto ao plenário em troca da liberação de pautas econômicas consideradas estratégicas pelo Planalto para fechar o ano e ajustar o terreno fiscal mirando 2026.
Leia maisO resultado foi previsível. O Congresso, mais uma vez, legislou em causa própria. Sob o argumento técnico de “recalibrar penas”, aprovou-se um projeto que, na prática, beneficia Jair Bolsonaro e outros condenados ou investigados por atos contra a democracia, abrindo um precedente perigoso: o de transformar tentativa de golpe em crime negociável.
O mais grave é que essa decisão foi tomada contra a vontade expressa da maioria da população brasileira. Pesquisas recentes mostram rejeição majoritária a qualquer afrouxamento das penas impostas aos responsáveis pelos ataques de 8 de janeiro. Mesmo assim, e apesar de manifestações populares que reuniram milhares de pessoas em diversas capitais, o Senado avançou. Foi um gesto explícito de desprezo à opinião pública — a clássica “banana para o povo”, institucionalizada.
Do lado do governo, a postura foi tudo, menos coerente. Publicamente, Lula e sua base afirmam repudiar o projeto e classificam o texto como inconstitucional. Nos bastidores, porém, permitiram que a negociação prosperasse. O Planalto decidiu lavar as mãos, apostando que o estrago seria contido depois, seja por meio do veto presidencial, seja pela atuação do Supremo Tribunal Federal.
Trata-se de uma estratégia arriscada. Ao transferir para o STF a responsabilidade de enterrar um projeto aprovado com anuência tácita de sua base, o governo reforça uma dinâmica perversa: o Legislativo empurra decisões impopulares e moralmente questionáveis, enquanto o Judiciário é convocado a apagar o incêndio. O resultado é o desgaste institucional de todos os Poderes e a corrosão da confiança democrática.
O PL da dosimetria não é apenas um ajuste técnico. É um salvo-conduto simbólico. Ao sinalizar indulgência com crimes contra o Estado Democrático de Direito, o Congresso envia uma mensagem perigosa ao país: amanhã, quem atentar contra a democracia poderá contar com a complacência política, desde que tenha força suficiente para negociar.
No fim das contas, o episódio deixa uma lição amarga. O Congresso segue legislando para proteger os seus, o governo prefere o cálculo ao confronto, e o povo — mesmo quando vai às ruas — continua sendo tratado como figurante. Resta ao STF, mais uma vez, o papel de último dique institucional. Mas democracia que depende sempre do Judiciário para sobreviver já está seriamente doente.
*Jornalista e consultor de marketing político
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