Do jornal O Globo
Os entraves enfrentados pela oposição para avançar com uma proposta de anistia a envolvidos em atos golpistas, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro, vão além do apoio para aprovar a medida. As resistências incluem dificuldades políticas, como dissidências dentro de siglas do Centrão e declarações contrárias de caciques do Senado, a jurídicas, uma vez que há jurisprudência no Supremo Tribunal Federal (STF) para considerar a medida como inconstitucional. Outro obstáculo que precisaria ser superado é o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dado como certo por aliados do Palácio do Planalto, o que obrigaria um apoio ainda maior para derrubá-lo.
Na Câmara, a proposta precisa de maioria simples, ou seja, ter mais da metade dos votos dos parlamentares presentes na sessão. O líder do PL, Sóstenes Cavalcante (RJ), calcula já ter esse apoio necessário na Casa. Sua conta inclui o aval do União (54), PP (45), Republicanos (41), PSD (23), Novo (5), PL (88), MDB (20), Podemos (9) e PSDB/Cidadania (9). Somadas, essas bancadas chegam a 295 deputados.
Leia maisJá no Senado, o cenário é mais desfavorável à proposta. A oposição é minoria na Casa, reunindo em torno de 30 dos 81 senadores. Além disso, o texto precisaria antes passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), presidida pelo senador Otto Alencar (PSD-BA), crítico declarado da anistia. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, também já avisou que não pautará o texto defendido pela oposição.
O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), reforça que não há ambiente na Casa. “Não passará no Senado. Não vejo possibilidade de projeto de anistia vindo da Câmara ser apreciado aqui. Até a proposta alternativa, mesmo essa, eu creio que ainda tem que ter um debate mais pormenorizado”, disse Randolfe.
Mas, mesmo que a oposição vença essas resistências, a oposição teria como desafio angariar mais adeptos à proposta para uma eventual derrubada do veto de Lula. Diferentemente da maioria simples necessárias para aprovar um projeto de lei nas duas casas, a derrubada do veto, pelas regras do Congresso, precisa da chamada maioria absoluta. Ou seja, é necessário que 257 deputados e 41 senadores votem neste sentido, independentemente do quórum na sessão — marcada por deliberação de Alcolumbre.
As barreiras para o projeto de anistia, porém, vão além do campo político. Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) já indicaram considerar a medida como inconstitucional. Magistrados ouvidos pela reportagem sob condição de anonimato lembram que a Corte já invalidou, em 2023, uma tentativa de perdão ao ex-deputado Daniel Silveira. Na época, Bolsonaro havia editado um decreto que beneficiava o aliado. A avaliação da maioria da Corte, contudo, foi que o dispositivo não poderia ser aplicado em caso de crimes contra o Estado Democrático de Direito.
“No ordenamento jurídico brasileiro, cabe ao Legislativo criar leis e ao Judiciário realizar o controle de sua constitucionalidade. Quem dá a última palavra sobre uma lei ser ou não compatível com a Constituição é o Judiciário e não há no exercício desse controle de constitucionalidade qualquer invasão de um poder em outro, mas mera aplicação das regras previstas na Constituição Federal”, afirma o advogado Cristiano Maronna, diretor do Justa.
Negociação política
Apesar da pressão da oposição pela anistia, políticos experientes do Congresso avaliam que não será necessário o STF se envolver na questão, uma vez que no cenário de hoje ela deve ser barrada antes.
“A anistia é flagrantemente inconstitucional, o Supremo já formou uma posição quando apreciou o indulto do Bolsonaro ao Daniel Silveira. Compete ao presidente do Senado fazer a admissibilidade de qualquer matéria e o regimento veda que matéria flagrantemente inconstitucional tramite”, disse o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que já presidiu o Senado em quatro oportunidades.
Principal porta-voz da ofensiva da oposição pela aprovação da anistia, Sóstenes já admite que a discussão deve ser adiada para depois do julgamento da trama golpista no STF. A previsão é que a Primeira Turma da Corte conclua a análise de ação penal, que tem Bolsonaro e outros sete aliados como réus, na semana que vem.
Segundo o líder do PL, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) já avisou que a semana que vem será destinada para uma pauta mais leve, de consenso entre os partidos, em que as sessões inclusive serão remotas, sem a obrigação dos parlamentares estarem presentes em Brasília.
O apoio dos partidos do Centrão à proposta, dados como certo por Sóstenes, também tem sido instável. Uma ala do PP prefere aguardar o desfecho do julgamento antes de se manifestar. Ainda que minoritária, essa ala tem dito que só decidirá após a decisão do Supremo. No PSD, parlamentares lembram que quase metade da bancada é contra a anistia. E no MDB, a cúpula se posiciona abertamente contra o texto.
Mesmo aliados próximos de Bolsonaro dentro do PL se preocupam com o cenário em que o Supremo pode avaliar a medida como inconstitucional e invalidar uma eventual aprovação pelo Congresso.
Dentro da base governista, por sua vez, há uma preocupação com o endosso que a iniciativa ganhou na cúpula dos partidos do Centrão. Para brecar isso, deputados da base têm tentado usar a pressão popular para fazer com que o Congresso recue. Dentro dessa estratégia há até uma disputa de nomenclatura: há quem defenda que o texto deixe de ser chamado de “anistia” e passe a ser tratado como “projeto da impunidade”.
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