Por Antonio Magalhães*
Em 15 de março de 1985, há 40 anos, seria a data da posse na Presidência da República de Tancredo Neves, depois de 21 anos de regime militar. Uma posse que não houve. Na véspera, o presidente eleito foi internado num hospital de Brasília e só saiu dali em 21 de abril para o cemitério de São João del Rei, em Minas, sua terra natal. Morreu o homem, mas não suas ideias de paz e conciliação entre os brasileiros. O discurso da posse que não aconteceu é significativo para os brasileiros que têm esperança de dias melhores.
“Não celebramos uma vitória política. Esta solenidade não é a do júbilo de uma facção que tenha submetido a outra, mas a festa da conciliação nacional, em torno de um programa político amplo, destinado a abrir novo e fecundo tempo ao nosso País. A adesão aos princípios que defendemos não significa, necessariamente, a adesão ao governo que vamos chefiar. Ela se manifestará também no exercício da oposição. Não chegamos ao poder com o propósito de submeter a Nação a um projeto, mas com o de lutar para que ela reassuma, pela soberania do povo, o pleno controle sobre o Estado. A isso chamamos democracia”, explicitou o documento do quase presidente.
Leia maisComo articulador da volta à democracia, Tancredo, juntamente com Ulysses Guimarães, Fernando Lyra, Jarbas Vasconcelos, Marcos Freire, Thales Ramalho, entre outros de igual quilate, conseguiu desarmar os espíritos revanchistas dos dois lados. Desarme iniciado antes pela anistia geral, ampla e irrestrita proposta pelo último presidente militar João Figueiredo em 1979. No voo da anistia vieram os exilados Miguel Arraes, Leonel Brizola, Carlos Prestes, outros líderes da esquerda, intelectuais presos no Brasil e muito militantes integrantes da luta armada, inclusive o jornalista Fernando Gabeira, que em 1969, participou do sequestro do embaixador americano para troca por presos políticos.
Hoje, Gabeira, comentarista da GloboNews, não defende uma anistia aos manifestantes presos depois do 8 de janeiro de 2023, detidos por uma suposta tentativa de golpe de estado sem armas e condenados em média pela baderna na Capital Federal a penas de 14 a 17 anos de prisão. Para ele, “a anistia pretendida agora depende de uma correlação de forças entre vencedores e vencidos que não há no momento. Na época, o governo militar estava enfraquecido e tinha interesse numa anistia ampla, geral e irrestrita para encobrir as sanções que os militares aplicaram fora da lei”. O raciocínio de Gabeira pode enquadrar as premissas do atual movimento pela anistia dos esquecidos de Brasília.
Voltando ao discurso de Tancredo Neves, que é o que interessa, ele disse, no momento em que instalaria o primeiro governo civil sob seu comando, que “temos um povo com a consciência de sua força e de seu destino. Os duros sacrifícios transformaram-se, pelo milagre da fé, na impetuosidade cívica dos últimos meses. Não há quem o possa fazer recuar. Ai dos que pretendem violar esta unidade, manchar esta bandeira de esperança”.
E continua: “É tempo, portanto, de edificar um Estado que sirva à plenitude de nosso povo. Não deve ser um Estado que as elites outorguem à Nação, em orgulhoso ato de poder, mas que se erga, da consciência coletiva, como resposta a anseios e necessidades. Ele deve ser construído para promover a ordem e a justiça. Ordem e justiça se fazem com a lei. E a lei deve ser a organização social da liberdade”.
Cheio de entusiasmo por inaugurar a Nova República, Tancredo recorreu à advertência do Profeta Isaías, numa hora grave, quando perigo de um retrocesso político ainda estava no ar: “Ai dos que decretam leis injustas e dos que escrevem perversidades, para prejudicarem os pobres em juízo e para arrebatarem o direito dos aflitos de meu povo; para despojarem as viúvas e para roubarem os órfãos”.
“Durante os últimos decênios acentuou-se em nosso País a injustiça contra os trabalhadores. Essa situação tornou-se ainda mais iníqua diante das seduções do consumo e da ostentação de alguns setores de nossas elites econômicas. Se aos insensatos não comove a exigência de justiça, é possível que os atinjam as razões do temor”, acrescentou o presidente no seu discurso de posse que não ocorreu.
E depois de anos de censura à imprensa, liberada parcialmente nos estertores do regime militar, Tancredo Neves fez uma exortação aos princípios de liberdade individual e de expressão, incluídos depois no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
“Quando falamos em liberdade, entendemos o vocábulo em seu amplo significado. O homem deve ter liberdade de viver onde quiser, de trabalhar como quiser e de exercer plenamente a sua identidade. Identidade é, mais do que os documentos de registro civil, a expressão da cultura de cada um. Sempre que não houver prejuízo para a comunidade, o homem tem direito à fé, ao culto, aos costumes que escolher. O Estado não pode intervir, por meio da censura ou da coerção policial, contra a expressão individual ou coletiva de uma identidade cultural particular, sempre que ela, repetimos, não signifique censura ou coerção contra o direito dos outros”, destacou Tancredo.
Quarenta anos depois, onde estamos? É isso.
*Jornalista
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