Por Aldo Paes Barreto
Ali, onde começa Boa Viagem e termina o Pina, a Prefeitura do Recife restaurou o antigo cinema, promoveu alguns retoques e rebatizou o velho prédio de Teatro Barreto Júnior. Boa iniciativa e melhor lembrança. Tudo em vão. O teatro teve poucos atos. As duas máscaras que representam a mais antiga das artes cênicas ganharam outros cenários.
A comédia ficou sem graça; o drama resiste em variadas e tristes tragédias nas calçadas do teatro, representado por homens, mulheres e crianças que dormem debaixo do cobertor da noite. São os sem-teto. Na plateia em movimento, passam os indiferentes à realidade e os que fecham as janelas dos carros rezando para o semáforo passar para o verde. Pelo menos é uma esperança. A miséria é vermelha e assustadora.
Meu primo, Barreto Júnior, como nós nos tratávamos, foi um homem de teatro. Integral. Nasceu no Cabo de Santo Agostinho, berço da família Paes Barreto que ali se estabeleceu lá pelos idos do Século XVI, primeiros anos da colonização. Foi produtor, empresário, diretor, ator que se especializou em fazer todo mundo rir. No palco, contagiando a plateia com sonoras gargalhadas e o público mais humilde das muitas cidadezinhas por onde passou levando sua arte, seu teatro itinerante.
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Barreto Júnior sempre fez da vida um ato de bom humor, um gosto permanente pela alegria de viver. Garoto, estudou num dos melhores colégios do Recife, o Salesiano, mas gazeava as aulas e, para desespero da família, fugia. Preferia assistir aos ensaios do Teatro Helvética. Com vinte anos, saiu de casa e foi fazer o que gostava. Teatro. A partir dali, sempre subia ao palco e, naquele espaço sagrado, contagiava todos com seu jeito cativante e riso largo.
Viveu alguns anos no Rio de Janeiro, aprendeu, foi um dos fundadores do respeitado Teatro Brasileiro de Comédia. Em 1947, retornou ao Recife, fazendo teatro onde houvesse um pedaço de chão, um palco e as pessoas levassem suas cadeias de casa. Divertia e se divertia. Com ajuda do benevolente amigo Aldemar da Costa Carvalho, ergueu o Teatro Almare, depois o Teatro Marrocos, na Praça da República, vizinho ao Santa Izabel.
Na baixa temporada, levava teatro às pequenas cidades do interior e descobriu que o golpe de 1964 poderia lhe ser muito útil para vender ingressos antecipadamente. Mandou confeccionar cartão de visitas onde se lia: Cmte. Barreto Junior. Aos xeleléus do prefeito, dava a entender que se tratava do Comandante Barreto Júnior. As portas se abriam. Quando questionado, explicava: o Cmte era de Comediante e não Comandante. Comediante Barreto Júnior.
Foi assim que, no município de Jequié, na Bahia, vendeu os ingressos antecipadamente, hospedou-se no melhor hotel da cidade. Na manhã da estreia, durante o variado café posto à mesa do hotel, levou alguns convites para um hóspede ilustre. O cidadão, com enorme anelão esmeralda no dedo, não achou graça. Era o médico da região. Recusou o convite dizendo que não iria perder tempo com aquele teatrinho mambembe.
Dia seguinte, mesmo cenário, café servido, Barreto cai da cadeira. Tem o rosto vermelho sanguíneo, arroxeado, suando muito, os intensos olhos azuis esbugalhados. Barreto estava tendo um enfarte, gritaram as pessoas em volta. Chamam o médico. O profissional veio rápido, trazia o estetoscópio. Auscultou Barreto, fez cara de preocupação, buscou uma seringa na bolsa e o remédio milagroso: injeção de coramina. Mas, antes de aplicar o medicamento, Barreto levanta-se, senta na cadeira, o vermelhão vai embora e Barreto fala:
— Doutor, eu sou um ator!
Fechou a cortina e foi dividir suas alegrias em outro palco. Morreu em 1983. Sem choro, nem vela.
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