Meu papai nasceu há 102 anos completados hoje, na zona rural dos Borges, transformada num bairro periférico em Afogados da Ingazeira. Descendente da família Fonseca, cidade de Porto, em terras lusitanas, seu pai Augusto destravou o chão de vidas secas, como escreveu Graciliano Ramos.
Vovô Augusto ganhou a vida como sapateiro, mas papai, que morreu há dois anos, nunca gostou do ofício. O cheiro forte da graxa respingava no seu humor. Naqueles tempos, entretanto, vovô virou o maior sapateiro da região. Ganhou as condições para criar 14 filhos.
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À medida que confeccionava suas alpercatas, as penduravam na parede para secar. Nunca esqueci uma frase dele revelada pelo meu pai: “Tá vendo essas bichinhas penduradas ali? Amanhã, estão aqui”, concluía, apontando para o bolso.
Era a maneira toda especial de dizer que sua arte se convertia em dinheiro vivo. Meu pai puxou a ele. Com o tempo, entrou para o comércio como dono de padaria. Mas os padeiros, em dias de revolta, deixavam o pão passar além do tempo do relógio, espantando a freguesia, que corria do pão queimado.
Papai se irritou e trocou de ramo. Optou pelo varejo de miudezas em geral. Transformou-se num dos maiores comerciantes de Afogados da Ingazeira. Do comércio, enveredou para a política. Elegeu-se vereador por quatro mandatos e chegou ao cargo de vice-prefeito.
Também foi servidor público federal dos Correios e Telégrafos. Com ele, aprendi a postar correspondências, escrever cartas para a matutada e a receber e copiar telegramas. Foi nesta fase inesquecível que recebi o estalo, o raio que me iluminou para o jornalismo.
Quanta falta sinto do meu pai, das suas admoestações, dos seus discursos, dos textos que me passava para revisar! Escrevia poeticamente, construía frases sobre o Sertão que se emocionava e nos tocava profundamente. Foi um homem do comércio, da política e do mundo encantado da literatura.
Herdei dele o gosto pelas letras. Meu irmão Augusto Martins, vereador por quatro mandatos e vice-prefeito de Afogados da Ingazeira, herdou o dom da política. Repetiria mais tarde os mesmos caminhos do meu pai.
Meu pai foi um homem excepcional, como nenhum outro. Ele me deu a vida, me alimentou, me ensinou, me vestiu, lutou por mim, me segurou, gritou comigo, me beijou.
Mas o mais importante: ele me amou incondicionalmente. Foi um pai presente, luz que me guiou como peregrino durante sua longa jornada. Me ajudou a escolher o melhor caminho, ofereceu o conforto e ao mesmo tempo o calor. Deu abrigo e segurança nos momentos mais difíceis da minha vida.
Seu coração grandioso, não tenho dúvida, foi obra-prima de Deus.
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