Por Jorge Henrique Cartaxo e Lenora Barbo*
Do Correio Braziliense
Barbosa era o camareiro do Palácio do Catete. Passava alguns minutos das 8h30 da manhã, quando o auxiliar, como fazia rotineiramente, adentrou o quarto do presidente para lhe fazer a barba. Getúlio, que havia passado aquela noite em claro, o dispensou. Minutos depois, um disparo se fez ouvir entre os burburinhos, as vozes e os passos que não haviam cessado no Catete nas últimas tensas e assustadoras horas daquele 24 de agosto de 1954. Com um tiro no coração, Getúlio Vargas, como ele mesmo escreveu na sua famosa carta-testamento, saía da vida “para entrar na história”. Encerrava-se uma era no Brasil!
A última reunião do gabinete de Vargas teve início às duas horas da madrugada, no salão de banquetes do Palácio do Catete, no segundo andar. Estavam presentes os ministros Tancredo Neves, da Justiça; almirante Renato Guillobel, da Marinha; Oswaldo Aranha, da Fazenda; brigadeiro Epaminondas Gomes dos Santos, da Aeronáutica; Apolônio Sales, da Agricultura; Edgar Santos, da Educação; Zenóbio da Costa; da Guerra; José Américo de Almeida, da Viação e Obras Públicas; marechal Mascarenhas de Moraes, do EMFA; general Caiado de Castro, chefe do Gabinete Militar; Alzira Vargas, filha do presidente; Amaral Peixoto, marido de Alzira e governador do Rio de Janeiro; e os deputados Danton Coelho, Euclydes Aranha e Augusto do Amaral Peixoto. O ex-ministro João Goulart, Maneco Vargas e Bejo Vargas também estavam presentes.
Leia maisNa pauta, a renúncia do presidente. O general Caiado de Castro, o ministro Tancredo Neves e o ministro Oswaldo Aranha — ainda que, com alguma cautela — defendiam a resistência armada para assegurar a ordem constitucional. Mais contundente e desafiadora, colocou-se Alzira Vargas, observando que a dita exigência nos quartéis era uma conspiração de gabinete. Os oficiais que propugnavam pela deposição do presidente não tinham tropa e nem armas para enfrentar o Catete, entendia Alzira.
Sereno, impenetrável e indiferente, Vargas apenas ouvia as inquietações na histórica reunião. “Já que os senhores não decidem, eu vou decidir. Minha determinação aos ministros militares é no sentido de que mantenham a ordem e o respeito à Constituição. Nessas condições, estarei disposto a solicitar uma licença, até que se apurem as responsabilidades. Caso contrário, se quiserem impor a violência e chegar ao caos, daqui levarão o meu cadáver”, disse Getúlio, encerrando a reunião, às quatro e 20 da madrugada, dirigindo-se, em seguida, para o seu quarto, onde encerraria a vida.
O relatório parcial do polêmico inquérito policial militar que apurava o “atentado” contra Carlos Lacerda e a morte do major Rubens Florentino Vaz, no dia 5 de agosto de 1954, com a identificação da participação do chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato, e alguns subordinados, intensificou a crise político-militar no país. Para se posicionar sobre essa investigação, os oficiais-líderes da Força Aérea se reuniram no Clube da Aeronáutica, no dia 22 de agosto. Exigiram a renúncia do presidente da República.
Mas não eram só eles: os generais Juarez Távora, Álvaro Fiuza de Castro Canrobert Pereira da Costa, o brigadeiro Ivan Carpenter Ferreira e o almirante Saladino Coelho, entre outros oficiais das três armas, numa reunião com o marechal Mascarenhas de Moraes, pediram a renúncia do presidente. Somava-se a tudo isso a militância contínua do brigadeiro Eduardo Gomes contra o Catete.
Os endinheirados nacionais — nunca tivemos uma elite de fato na República —, e menos ainda o governo americano, não viam com bons olhos a linha nacionalista e popular de Vargas. Esse embate se refletia de maneira muito evidente nos quarteis e na imprensa. Quando David Eisenhower assumiu o governo dos Estados Unidos, em janeiro de 1953, Vargas foi convidado para uma visita à Casa Branca. O gaúcho não gostava muito de sair do país. Pediu à filha Alzira que o representasse.
Amaral Peixoto, o esposo de Alzira, foi quem, de fato, conversou com o novo presidente americano. Ele entendeu a nova postura de Washington em relação à América Latina. Os investimentos de grandes capitais privados substituiriam o plano de cooperação econômica entre os governos, iniciado por Roosevelt na Segunda Guerra Mundial. Para as estratégias de Vargas, que havia decretado limites para as remessas de lucros para o exterior, era um dado novo e desestimulador.
“Uma aventura de nacionalistas rasteiros”, estampou o Correio da Manhã, quando Vargas assinou, no dia 3 de outubro de 1953, a criação da Petrobras. Mas não era só isso. Ele havia criado o Banco do Nordeste, o CNPq, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, redimensionado a Vale do Rio Doce, intensificado a construção da Usina de Paulo Afonso e a refinaria de Cubatão. Criou ainda o Plano Nacional de Eletrificação, que viria a ser depois a Eletrobras.
Em relação direta aos trabalhadores, o presidente estabeleceu uma política salarial consistente e defendeu também uma jornada média de oito horas para o trabalhador rural, segurança para o trabalho da mulher e a permissão para que o homem do campo pudesse se filiar ao Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriais (IAPI). Essas conquistas não se traduziam em apoio dos parlamentares ao governo.
Na Câmara dos Deputados, composta por 304 parlamentares, o PTB e o PSP, contavam com 75 deputados. A UDN tinha 81 parlamentares e mais 36 das suas coligações. O PSD, com a maior bancada, no final, decidia tudo. A Guerra Fria em curso trouxe para Getúlio Vargas um novo cenário mundial, com fortes repercussões internas, que o consistente estadista não conseguiu, exatamente, apreender e liderar.
Ao contrário dos embates verificados depois da Constituinte de 1946 — na disputa regional entre Minas e Goiás — no governo de Getúlio Vargas, que se iniciou em 1951, apesar da permanente crise política que marcou o período, a decisão de construir a nova capital no Planalto Central do Brasil, em Goiás, prevaleceu e só teve seus trabalhos ligeiramente retardados diante das enormes tensões políticas que se verificaram no país com o suicídio de Vargas, os breves governos Café Filho e Nereu Ramos, e a eleição e posse de JK em 1956.
A Lei n° 1.803, de 5 de janeiro de 1953, que autorizou o Poder Executivo a realizar os estudos definitivos sobre a localização da nova capital da República, em seus nove artigos, delimita os paralelos onde deve se localizar o sítio onde deve ser edificada a nova capital: entre os paralelos 15º 30′ e 17º e os meridianos a W. Gr. 46º, que insere o já conhecido Quadrilátero Cruls. No seu artigo 1º, de certo modo, a lei repete algumas orientações e os estudos já apresentados nas Comissões Cruls, incluindo agora as referências para os novos padrões tecnológicos da época: clima e salubridades favoráveis; facilidade de abastecimento de água e energia elétrica; facilidade de acesso às vias de transporte terrestres e aéreas; topografia adequada; solo favorável às edificações e existência de materiais de construção; proximidade de terras para a cultura; paisagem atraente.
A nova urbe deveria ser planejada para acolher uma população de 500 mil habitantes. O novo Distrito Federal ocuparia uma área aproximada de 5 mil quilômetros quadrados. Ordenava, ainda, os estudos necessários para a organização e transferências dos órgãos do estado, dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Assinaram essa lei o presidente Getúlio Vargas e os ministros Francisco Negrão de Lima, Renato de Almeida Guillobel, Cyro Espírito Santo Cardoso, João Neves da Fontoura, Horácio Lafer, Álvaro de Souza Lima, João Cleófas, Simões Filho, Segadas Viana e Nero Moura.
No dia 8 de junho de 1953, pouco mais de cinco meses depois da publicação da Lei n° 1.803, o presidente Vargas cria a Comissão de Localização da Nova Capital Federal, que seria presidida pelo general Caiado de Castro, chefe da Casa Militar. Com algumas orientações específicas, genericamente, a comissão teria que cumprir o que determinava a Lei n° 1.803.
Como essa comissão seria desfeita com o suicídio de Vargas, em agosto de 1954, ela só teve tempo de concluir dois importantes trabalhos: o levantamento aéreo topográfico realizado pela empresa Geofoto Ltda; em seguida, a empresa americana Donald J. Belcher & Associates Incorporated, de Ithaca, New York, USA, foi orientada para, “mediante estudos de fotoanálise e interpretação, indicar, dentro da área de 52 mil quilômetros quadrados, os cinco melhores sítios de mil quilômetros quadrados cada um, os quais satisfizessem as condições estipuladas no parágrafo 1º da Lei n° 1.803”. Eram membros da comissão: Aguinaldo Caiado de Castro, presidente; Tasso da Cunha Cavalcante; capitão de Mar e Guerra Paulo Bosisio; coronel Aureliano Luiz da Faria; Jorge d’Escragnolle Taunay; Adhemar Barbosa Portugal; Flavio Vieira; João Castelo Branco; Paulo Assis Ribeiro; Valdir Niemeyer; coronel Júlio Américo dos Reis; coronel Pedro da Costa Leite; engenheiro Jerônimo Coimbra Bueno; major Mauro Borges Teixeira; coronel Deoclécio Paulo Antunes.
Em 11 de novembro de 1954, já no governo do presidente Café Filho, por meio do Decreto n° 36.598, é criada uma nova Comissão de Localização da Nova Capital Federal, agora presidida pelo marechal José Pessoa. Não há diferenças substanciais entre as atribuições das duas comissões, mas podemos sublinhar a elaboração de um plano de desapropriação; um estudo mais aprofundado para um plano rodoferroviário que integre a capital com as demais regiões do país e um plano de estudos definitivos das vias de transportes necessárias à efetivação da mudança da capital para o local a ser escolhido.
*Jorge Henrique Cartaxo é jornalista e diretor de Relações Institucionais do IHGDF | Lenora Barbo é arquiteta e diretora do Centro de Documentação do IHGDF
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