Ainda em Afogados da Ingazeira, em temporada sertaneja para meus filhos Magno Filho e João Pedro botarem o pé no chão seco, soltarem pipas e andarem descalços pelas ruas que andei, quando criança, me veio uma ideia, de falar na crônica de hoje sobre a fase dos mal-assombros, dos medos e dos fantasmas de garoto em minha terra natal.
Vivi meus anos dourados numa época em que televisão não se via no Sertão por falta de sinal, o que só se deu muito tempo depois com a chegada do Detelpe. Tempos também de escuridão: a energia, movida por um velho e barulhento motor, uma geringonça que não sei de onde veio, era desligada pontualmente às 21 horas.
Leia maisTodos os dias, fizesse chuva ou sol. Só nos restavam a luz da lua e dos românticos lampiões. No meu grupo de amigos havia o intrépido Fernando Moraes, filho de seu Expedito da Miudeza, como era mais conhecido. Ele tinha uma terrível obsessão em nos pregar medo.
Contava que, após o apagão das 21 horas, um lobisomem surgiria, de repente, mais que de repente, para nos arrancar o fígado. Eu tremia de medo feito vara verde. Perdia noites de sono, achando que, na minha mais notável ingenuidade, seria atacado pelo bicho-papão na escuridão do meu quarto.
Certo dia, meu pai deu uma bronca tão violenta em Fernando que nunca mais ele falou de malassombros para nós, eu e Marcelo meu irmão, um ano a mais avançado no tempo em relação a mim. Mas nunca fugiu da minha memória a figura do lobisomem nas minhas divagações noturnas. Por tudo que Fernando descrevia, era gigante, se vestia de branco e surgia com um machado nas mãos para nos arrancar o fígado.
Ainda na minha fase de medos, tinha pavor a Perna de Pau, um engraxate bem debochado que havia perdido uma perna num acidente de trem, da mesma forma que Roberto Carlos. Para fazer medo às crianças, ele exibia o cotoco da perna. Eu tinha horror, nunca passei no beco que ele trabalhava.
Havia outros personagens da fase do medo: Zé Doido era um deles. Quem o atiçasse, levava uma pedrada. Ele andava com um saco de pedras e corria atrás de quem o provocasse. Falava inaudível, era baixinho e mal-cheiroso. Havia também Coqueirão, uma magricela fedorenta de quase dois metros, que fazia medo pela sua feiúra. Tinha também Desmantelo, magro, grande feito Coqueirão e banguelo.
Outro personagem popular: Dom João. Era um ceguinho que morava na esquina da nossa casa, onde hoje funciona o Banco do Brasil. De forma impressionante, ia buscar água no rio Pajeú, a mil metros da sua casa, levando um pote na cabeça. Usava uma chapa maior do que a própria boca. Tinha medo dele também porque Dija, hoje casado com minha irmã Fatinha, dizia que ele aprisionava crianças no cubículo em que morava sozinho.
Por fim, tinha Zé Pretinho, pai do jogador Deinha, que virou craque do Santa Cruz e chegou até a seleção brasileira. Sua mania: era andar o dia inteiro pela cidade. E também correr atrás de quem o xingava para bater sem piedade. Mas era muito espirituoso. Certo dia, passou em frente a uma farmácia e viu uma jovem vomitando. Perguntou o que estava acontecendo. Um funcionário da farmácia respondeu que havia sido comida (efeito da má alimentação). De supetão, ele quis saber: “E o cabra já foi preso “?
Quando somos crianças, alimentamos o medo de fantasmas. Com a maturidade, o medo de sermos magoados, de sermos feridos. Que falta sentimos dos fantasmas de nossa infância!
Mas não há dor que não cesse. Não há medo que não se transforme em coragem. Não há fantasma que não evapore no tempo. Não há lágrima que não se transforme em riso. Tudo, a seu tempo, se transforma e nos faz crescer em força, fé e certeza de que por maior que seja a ferida, um dia ela fechará.
E se tornará, apenas e tão somente, uma cicatriz a nos lembrar que, mesmo tendo jorrado sangue, latejado e nos causado sofrimento imensurável, ela nos deixou, unicamente, uma recordação de que fomos fortes o suficiente para dar a volta por cima.
Também recolocar um sorriso no rosto, reabrir as janelas da alma e pegar nossas vidas de volta, muito maiores em força, esperança e certeza de que nada é para sempre, nem mesmo a dor.
Leia menos