Por Fábio Corrêa Neto*
A democracia brasileira percorre, há décadas, um caminho sinuoso entre avanços institucionais e retrocessos disfarçados de legalidade. No centro desse percurso está uma tensão permanente: como equilibrar o respeito à soberania popular com a atuação de instituições que, embora legitimadas pelo sistema constitucional, não se submetem ao crivo direto do eleitorado?
Entre os pilares do Estado Democrático de Direito estão a separação dos poderes, a soberania do voto popular e o princípio da legalidade. No entanto, não raras vezes, vemos esses fundamentos sendo distorcidos por interpretações expansivas, personalistas e muitas vezes não uniformes, emanadas de membros de cortes superiores. E a questão que inquieta: como pode um ministro do Supremo Tribunal Federal (ou do Tribunal Superior Eleitoral), nomeado por ato unilateral do chefe do Executivo, sem jamais ter recebido um voto sequer, cassar o mandato de um parlamentar eleito por milhares — às vezes milhões — de brasileiros?
Leia maisA resposta formal é simples: o ministro integra um tribunal competente e age com base no ordenamento jurídico. Mas a resposta substancial é complexa e inquietante. Quando decisões judiciais se sobrepõem de forma recorrente à vontade majoritária das urnas, algo se desalinha no tecido democrático.
É evidente que todo mandato eletivo está sujeito à legalidade. Cassações por abuso de poder econômico, compra de votos ou crimes eleitorais são instrumentos legítimos de proteção da democracia. O problema surge quando esses instrumentos passam a ser utilizados sob critérios de oportunidade, conveniência ou seletividade, afastando-se da impessoalidade exigida pela função jurisdicional.
Nos últimos anos, o Brasil presenciou uma série de episódios que colocam à prova a resiliência de sua democracia. Parlamentares cassados por manifestações políticas; redes sociais suspensas por ordem judicial sem contraditório; candidatos inelegíveis por supostos atos de “desinformação”. Estamos criando uma jurisprudência da exceção, onde princípios constitucionais são relativizados em nome da “defesa da democracia”.
Paradoxalmente, esse modelo pode se converter em um novo autoritarismo: um autoritarismo togado, onde o intérprete da norma passa a ocupar o centro da cena política. E, nesse ambiente, a insegurança jurídica se instala, o debate público se acirra, e o cidadão comum se distancia dos centros decisórios. Nesse ambiente, o subversivo punido pelo poder Executivo na época da Ditadura Militar passa a ser agora o punido pelo Império da toga.
A democracia é, por essência, plural. Não comporta unanimidades impostas, nem verdades únicas decretadas. Quando o Judiciário substitui o embate político pelo punitivismo moral, transforma adversários em inimigos, e o voto em papel secundário.
É necessário, portanto, repensar os limites dos poderes. O controle judicial não pode ser confundido com tutela permanente da democracia. O guardião da Constituição não pode se tornar seu intérprete exclusivo e irrecorrível, sob pena de corroer os próprios fundamentos que jurou defender.
Neste momento histórico, em que o Brasil enfrenta polarizações intensas, desafios sociais urgentes e crises institucionais recorrentes, é preciso reafirmar o compromisso com a democracia como prática e não como discurso. E isso exige coragem: a coragem de limitar o poder, inclusive o poder de quem julga.
*Advogado, ex-deputado estadual
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