Capítulo 42
Escritor moçambicano, Mia Couto escreveu que um morto amado nunca para de morrer, ao fazer uma comparação do luto à cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro – a ausente permanência de quem morreu. A luta do luto é dolorosa para a socióloga Anna Maria Maciel, viúva de Marco Maciel, um dos políticos mais importantes no processo do reencontro do Brasil com a democracia, encerrando o ciclo dos anos de chumbo. Marco Antônio, como Anna assim o chamava, morreu em consequência do Mal de Alzheimer.
Seu ocaso, para quem brilhou como o sol, foi chama acesa nos momentos de escuridão da ditadura, durou 10 anos, de 2011, com o diagnóstico da enfermidade, até 2021, quando morreu. A doença roubou em velocidade devastadora a memória de quem era elogiado justamente pela boa memória quando se dava ao prazer de fazer o que mais gostava – articulação política. Sem a sua enorme capacidade de unir contrários, a Nova República, com Tancredo Neves, teria sido natimorta.
Leia maisAlguém pode não gostar do estilo ou seguir outra ideologia, mas Marco Maciel era uma das poucas unanimidades na política. Ninguém tinha o que falar dele. Foi um político de jeito calmo, discreto, de poucas palavras. Nunca teve seu nome envolvido em escândalo ou qualquer menção duvidosa. Muitos sentiram a sua falta em Brasília, no Congresso, em Pernambuco, mas ele estava em casa, já um morto vivo, porque não vivia mais o seu mundo e nem ao menos tinha a mínima noção do que se passava ao seu redor.
Na crise política que surrupiou o poder do PT, com o impeachment de Dilma em 2016, por exemplo, Marco Maciel já não entendia mais nada, sequer compreendia o que via e ouvia na televisão. Naquele época, enquanto o noticiário da televisão atualiza as supostas manobras do vice Michel Temer para ocupar o posto de Dilma, Maciel cerrava os olhos em frente à TV e já não expressava qualquer opinião.
A doença retirou-lhe a vida social, o entendimento político, o interesse pelos assuntos públicos. “Se lembrava de alguma coisa, ele não demonstrava nada. Falava raramente, e sempre por monossílabos. Se já era calado, ficou mais calado ainda”, revela Anna Maria. Segundo ela, seus filhos Gisela, Cristiana e João Maurício viviam dizendo para ela parar de falar política com o amado marido.
“Mas eu insistia e sempre comentava com ele: “Viu o que aconteceu com a política, viu isso ou aquilo?”. Recebia de volta o silêncio”, conta Anna, companheira de mais de meio século e responsável por comandar a equipe de cuidadores que se revezava na atenção ao ex-vice-presidente, na sua residência em Brasília.
Na luta contra o mal, Marco Maciel passou 10 anos morando com Anna num apartamento próprio na Asa Sul, em Brasília, único imóvel próprio, resultado da venda do apartamento que a família tinha em Boa Viagem, financiado pela Caixa Econômica Federal. Maciel talvez tenha sido uma das raras exceções no Brasil que morreu pobre, sem fazer fortuna em vida ocupando cargos públicos.
E não foram poucos. Ocupou as funções mais importantes que um político possa almejar: deputado estadual, governador de Pernambuco, deputado federal, senador, ministro de duas pastas, Educação e Casa Civil, e, por fim, vice-presidente da República por dois mandatos. De estilo discreto, Maciel, em média, governou o País por um dia a cada semana que Fernando Henrique Cardoso esteve na Presidência, entre 1995 e 2002, devido às viagens do titular.
“Eu vendi o apartamento do Recife para comprar um em Brasília e com isso me livrar do aluguel. De repente, o valor do aluguel ficou muito alto, impraticável. Aí resolvi vender. Marco Antônio confiava muito em mim nessa questão. A gente não tinha luxo, nunca levamos vida fácil. Tudo que é relacionado às questões financeiras, era comigo, porque ele não tinha sequer cartão de crédito, não andava com dinheiro, porque nem carteira tinha”, desabafou Anna.
Marco Maciel, segundo ela, só conseguiu enfrentar o tratamento porque tinha um plano de saúde pela condição de ex-senador. “Até hoje, o Senado tem um plano de saúde para ex-senadores. Quem passou lá, tem direito. O senado cobriu todas as despesas. Chegamos a pagar algumas emergências por fora, mas o tratamento foi coberto totalmente pelo Senado”, acrescentou.
Na condição de chefe de Estado interino, Maciel despachava em seu gabinete no subsolo do Palácio do Planalto, em estratégica posição para, literal e figurativamente, não fazer sombra ao titular. Maior apagador de incêndios da politica brasileira, Maciel chegou a conter os ímpetos do então senador Antônio Carlos Magalhães, que agia com eventual rebeldia no Congresso, e a conter crises como o escândalo da Pasta Rosa, sobre financiamento ilegal de campanha de aliados.
Mas depois da derrota para o Senado, em 2010, Marco Maciel parecia muito abatido. Uma depressão começou a ser tratada. Já era sinal de Alzheimer. A doença evoluiu a ponto de tirar-lhe as iniciativas. Anna Maria precisava prestar atenção a pequenos sinais para saber se ele estava doente ou com fome.
Decorrido o primeiro ano da morte dele, Anna faz uma confissão: “A gente não sabe se ele morreu sem saber que estava com Alzheimer. É triste ver que a pessoa morre aos poucos, muito triste. Foram dez anos desde o diagnóstico”.
O morto amado Marco Maciel, na visão do acadêmico Marcos Vinicius Vilaça, foi assim: “Em verdade a todos digo que fascina a sua postura de católico. A sua Igreja é a da mão estendida, a do amor. Não posso, jamais, imaginá-lo em atitudes de intolerância, de má vontade, afastando fiéis, sem compreender sentimentos de jovens, desatento aos motivos dos mais velhos, marginalizando sonhos familiares de sadia construção”.
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