Por Murilo Cavalcanti*
Uma mulher, uma cadeira de rodas e a coragem de transformar tragédia em luta por dignidade e acessibilidade.
O dia 30 de janeiro de 2003 ficou definitivamente cravado na minha memória. Naquela tarde, às três horas, minha irmã Mosana levou um tiro durante um assalto e ficou paraplégica. Com o ocorrido, ela poderia ter sido mais “um número” nas estatísticas da violência. Poderia ter transformado sua dor em revolta, em ódio, em vingança. Mas não. Mosana buscou outro caminho: transformou sua dor numa causa.
Leia maisRecife – então a capital mais violenta do Brasil – passou a contar com uma mulher guerreira, uma guerreira do bem. A cidade da violência era também a capital da hostilidade aos seus usuários cadeirantes, aos que tinham mobilidade reduzida. Mosana, com sua cadeira de rodas, tornou-se uma militante dessa causa. Foi às ruas, reivindicou, protestou, apontou soluções. Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, dizia em suas palestras: “A cadeira de rodas é a mais poderosa ferramenta de planejamento urbano. Se a cidade for boa para os cadeirantes, será boa para todos”. Mosana abraçou os princípios de Peñalosa e passou a ser uma voz ativa por cidades mais humanas.
Como se não bastasse tanta dor em 2003, Mosana partiu, precocemente, no dia 17 de julho de 2025 para outro mundo – desta vez, acometida por um AVC. Deixou uma legião de amigos com o coração partido. O meu, particularmente, dilacerado. Uma saudade eterna que somente o tempo se encarregará de amenizar. Mas Mosana não deixou somente saudade, deixou um legado para a cidade do Recife e uma lição para as gerações futuras: uma cidade só é boa se for uma cidade equitativa, de igualdade e oportunidades para todos. A cidade excludente, segregada e sem acessibilidade é a cidade da violência – em todos os sentidos.
Mosana foi a mente e o coração por trás do projeto ‘Praia Sem Barreiras’, uma iniciativa que devolveu às pessoas com mobilidade reduzida o prazer de sentir o mar. Por sua articulação incansável, o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos, estruturou e ofertou acessos com cadeiras anfíbias e passarelas nas praias de Boa Viagem e Fernando de Noronha. Assim, mais pessoas puderam viver a beleza do litoral com dignidade e liberdade.
A violência que a atingiu também provocou transformações em mim. Inspirado na dor de Mosana, fui trabalhar por um Recife mais seguro. Com os aprendizados dessa trajetória, concretizou-se a criação da rede Compaz – Centros comunitários que oferecem oportunidades, cultura e cidadania como instrumentos de prevenção à violência.
Mosana partiu, mas sua luz continua acesa em cada sorriso que reencontra o mar, em cada espaço público que se abre para todos, em cada cidadão que acredita num mundo mais justo e acessível.
Mosana era muito especial. Sua trajetória é um farol que continuará iluminando o caminho de quem acredita que barreiras existem para serem superadas. Seu legado viverá para sempre.
*Ex-secretário de Segurança Cidadã da cidade do Recife e formulador da rede COMPAZ
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