Por Alê Cavalcanti* // Foto: Bia Teles
Vovô acordava o mundo às quatro da manhã.
Punha a água no fogo, passava o café, buscava os jornais, ajustava os suspensórios e abria a porta da casa – e da alma – para quem quisesse entrar. Era uma alvorada doméstica que não dependia do sol para começar. O dia, lá em casa, sempre nascia a partir de Josibias.
Entre a fumaça do café fresco e o rangido da cadeira de madeira, sua palavra era pássaro: voava leve, cantando coisas sérias com doçura. Ele era um homem sem aparato, mas de uma grandiosidade que nem mesmo os cargos mais altos conseguiram conter. E foram muitos. Vereador de Catende, prefeito por quatro mandatos, vice-prefeito, promotor de Justiça, professor. Mas, para ele, o título mais nobre era o mais simples: gente.
Leia maisO Brasil o viu no Fantástico, aos 88 anos, tornar-se o prefeito mais idoso do país. Eu o vi, desde sempre, ser o mais jovem entre os sábios. Sua lucidez tinha pernas longas, e caminhava pelas manhãs como quem abençoava o dia com ideias novas, mesmo que escritas na velha máquina de datilografia, a mesma que resistiu ao tempo e à tentação do computador. Ele não precisava de modernidades: era ele mesmo o futuro em estado de afeto.
Foi poeta, embora não tenha publicado livros. Mas não havia papel que coubesse sua poesia: ela escorria pelos hinos que compôs – o de Catende, o do Ginásio Municipal, o do Costa Azevedo –, pelas máximas que nos deixava como herança, e pelas conversas à sombra das mangueiras e cajueiros, que viravam lições eternas. “Quem se curva diante dos livros, ergue-se diante dos homens”, ele dizia. E o mundo se curvava diante dele sem que ele jamais pedisse.
Meu avô foi o meu alicerce e a minha alavanca. O meu título vitalício de jornalista começou ali, quando ele ria ao lembrar que, aos quatro anos, li no porta-título do seu bolso: “deputado estadual Henrique Queiroz”. Na sequência, ele soltou um “Eita, meu Deus, que a menina desembestou!” quando me viu soletrar Enciclopédia Universal Volume 1. Ele, de olhos brilhando, profetizou: “Essa menina vai ser jornalista”. E foi o que me tornei.
Mas mais que isso: fui sua neta. A neta que ele patrocinou o curso de Jornalismo. A neta que ele presenteou com a primeira bicicleta de cestinha, com o primeiro bebê da Estrela e com todos os livros que lhes coubessem nos braços. A neta que ele guiou pela estrada do pensamento e das palavras. A neta que dedicou a ele o seu primeiro livro, Letras Jardineiras – Trivialidades em verso e prosa, porque aprendeu com ele que escrever é plantar no papel a flor que se quer ver no mundo.
Vovô se foi, “mudou de frasco”, como diria a poetisa Ana Jácomo, no último sábado, 24 de maio, aos 96 anos. Parou de respirar, sem aviso, como quem entende que o tempo dos outros chegou, e é hora de dar passagem. Mas ele não partiu: apenas virou raiz.
Catende jamais será a mesma. Eu jamais serei a mesma.
Mas a cidade ainda ouvirá seu hino. E eu ainda o verei, sempre, sentado à mesa da aurora, com o café na mão e os olhos cheios de humanidade, me dizendo – entre um gole e outro – que ética, afeto e palavra são os melhores instrumentos para mudar o mundo.
Descanse, vovô, na paz de quem cumpriu todos os seus dias com inteireza.
E que os anjos recebam o Boca de Mel com a mesma alegria com que ele recebia a vida, todos os dias, às quatro da manhã.
*Jornalista e escritora
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