Por Marília Arraes*
Naquele dia, eu tinha passado a noite com ele no hospital, mesmo sem ser a minha escala. Era um sábado de manhã. Corri para casa para me arrumar, porque tinha aula de Processo Penal. Dentro de mim, havia uma certeza tranquila: logo, logo, ele iria para casa. Afinal, na minha cabeça, meu avô não ia morrer. Ele é Miguel Arraes.
Voltei e estávamos todos lá. Cada um reagindo à sua maneira. Mas uma cena me marcou para sempre: suas três irmãs – Almina, Anilda (já com um princípio de Alzheimer) e Maria Alice – estavam ao seu lado. Tia Maria Alice, chorando muito, se afastou para um canto da sala. Tia Anilda foi até ela e disse: “Pare com isso e volte. Seu irmão está morrendo e você tem que ficar com ele agora”.
Leia maisNa valentia da minha juventude, pensei: “Na vida, a gente não pode ser menos firmes do que isso”.
As lembranças da nossa convivência são tão vivas e inesquecíveis que parece que foi ontem. Mas já se passaram duas décadas. Tanta coisa aconteceu desde aquele dia! Governos e figuras públicas, de todos os espectros político-partidários, ascenderam e caíram. Vivemos um golpe de Estado: sem canhões, mas político, jurídico e midiático. Retrocedemos em tantas conquistas da classe trabalhadora, muitas das quais tiveram a mão de Arraes. Lula foi preso. O clima de antipolítica abriu espaço para que uma direita fascista mostrasse a cara. Inacreditavelmente, foi eleito um presidente que defendia a tortura, a ditadura e a subserviência do Brasil ao neocolonialismo.
Mas Lula foi solto, teve sua inocência reconhecida e voltou à Presidência. Quase sofremos outro golpe, mas desta vez os responsáveis estão sendo punidos. Pernambuco cresceu e estagnou. O Brasil ficou parado por um tempo, mas agora voltou a andar. Os Estados Unidos voltaram a atacar nossa soberania, e, dessa vez, estamos reagindo com o povo consciente ao nosso lado. Será que Arraes imaginava tantas idas e vindas na História?
E eu, sua neta mais velha, que tinha 21 anos, agora já completei 41. Ah, como ele iria adorar as bisnetas! Até porque, tinha uma predileção especial pelas mulheres. Tive a oportunidade de me posicionar do lado certo da História, quando a História exigiu isso de nós. Trabalhei, realizei, exerci mandatos. Disputei seis eleições. E todos os dias, na adversidade ou no êxito, lembrei dele. Sempre me perguntei: “O que Arraes faria?”
Se conheço Pernambuco inteiro, é porque, todos os dias, faço um pouquinho mais para ser parecida com ele, que é minha inspiração, meu modelo na política. Em cada canto do nosso Estado, sempre me encontro com Arraes: no rosto sofrido do homem e da mulher do campo; no trabalhador da cidade que luta por dignidade; naquele distrito aonde só se chega depois de uma hora por estrada de chão, mas que tem energia elétrica porque Arraes levou. Quando vejo alguém de cabeça erguida, lutando pelo Brasil e por direitos, em tudo isso vive Miguel Arraes.
No final das contas, a Marília de 21 anos estava certa: claro que meu avô não morreu. Ele é Miguel Arraes.
*Advogada e presidente do Solidariedade em Pernambuco
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