A primeira casa é como a primeira professora: impossível esquecer. Para mim, o Diário de Pernambuco, que comemora seu bicentenário, é um retrato drummondiano na parede da memória, impregnado no meu coração. Matuto expulso da seca no Sertão do Pajeú, pisei na redação do velho DP com apenas 17 anos. Foi um estampido de emoção e ao mesmo tempo de medo.
Medo de tudo: do desafio que se abria pelo futuro incerto, do barulho infernal de um exército de malucos produzindo em máquinas de datilografia, de estar frente a frente com ídolos que só conhecia pelas páginas do jornal mais antigo em circulação na América Latina, como José Adalberto Ribeiro, colunista político, João Alberto, colunista social e Adonias de Moura, editor de Esportes e colunista, que me trazia o noticiário do meu Santa Cruz.
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Gildson Oliveira, editor do Interior, meu primeiro chefe, prêmio Esso com uma série de reportagens sobre Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, era implacável. Rasgava minhas matérias trazidas do Interior na minha cara, quando perdia a paciência com meus textos rebuscados. E dizia: “Sabe em qual página vai sair sua matéria? Na sexta página, a cesta do lixo”.
Era humilhante? Sim, mas com o passar do tempo compreendi que jornalismo se aprende com chefes chatos, exigentes, duros, críticos e até mal-educados. Enfrentei muitos assim em Brasília, no Correio Braziliense, no Jornal de Brasília, em O Globo. Certa vez, atuando na agência O Globo, meu chefe me escalou para cobrir um balancete econômico, no Ministério da Fazenda.
Foi um desastre, uma experiência terrível, que nunca vou esquecer. Eram números e mais números intraduzíveis para um repórter que não entendia patavinas de economia fazendária. Levei gritos pelo telefone. Era o início da era digital, de notícias em tempo real. A concorrência nos engoliu.
O Diário de Pernambuco era o coração que pulsava mais forte na Praça da Independência, cenário de comícios e manifestações históricas. Cenário também do assassinato brutal do estudante Demócrito de Souza Filho, em 3 de março de 1945. Ele foi atingido por um tiro da polícia política do Estado Novo durante uma manifestação popular. O fato gerou grande repercussão e entrou para a história como um marco contra a ditadura de Getúlio Vargas.
O DP dos meus tempos de foca (jornalista em início de profissão) era único e imbatível. O JC, seu concorrente, agonizava. Não fazia concorrência. Havia ainda o Diário da Manhã, que Heleno Gouveia, seu controlador, fixava em placas nas ruas mais movimentadas do Recife. Também o Diário da Noite, que se espremesse jorrava sangue. Tempos bons! Atuei por 20 anos nos Associados, entre o DP, Correio Braziliense, Rádio Clube, Rádio Planalto e Agência Meridional.
Saudade de Antônio Camelo, que me deu carta branca para abrir, montar e dirigir a sucursal do DP em Brasília. De Joezil Barros, meu padrinho e amigo de todas as horas. De Selênio Homem de Siqueira, um dos intelectuais mais refinados que convivi. De Carlos Cavalcanti, meu segundo chefe, para quem fazia ronda policial e por quem era escalado para cobrir em Exu a guerra entre as famílias Alencar, Sampaio e Saraiva.
Como não lembrar do velho Ponzo, que datilografava as matérias usando apenas uma mão por causa de uma deficiência física. De Danda Neto, meu primeiro chefe na editoria de Política, de anarquistas, como Márcio Maia e Amin Stepple, e de figuras engraçadas como Zadok Castelo Branco, que batia suas matérias sentado sobre uma pilha de jornais. De gente memorável, como Zé Maria Garcia, chefe de diagramação por mais de 50 anos.
Zé Maria só fazia o espelho da primeira página do DP depois de bater o ponto na Cristal, onde tomava seus conhaques. No jornalismo do passado, a notícia estava nas ruas, nas viagens, chegavam em grandes reportagens em que a própria vida era colocada em risco.
Havia um maior foco em reportagens longas e investigativas, com tempo e espaço para um desenvolvimento mais completo dos fatos e narrativas mais ricas. O jornalismo tradicional era percebido como mais rigoroso na verificação dos fatos, com a credibilidade sendo um pilar fundamental da profissão, o que gerava maior confiança no público.
Profissionais de renome, muitas vezes com estilos de escrita distintos e vozes marcantes (como locutores de rádio e âncoras de TV), tornavam-se figuras emblemáticas e fontes de autoridade. A produção e o consumo de notícias tinham um ritmo menos frenético do que o atual. Os jornais eram diários, e os noticiários de rádio e TV tinham horários definidos, permitindo uma digestão mais pausada das informações, em oposição ao fluxo constante da internet.
O estilo jornalístico buscava um meio-termo entre a linguagem literária e a falada, valorizando a qualidade do texto e a capacidade de contar histórias de forma envolvente e detalhada. Com a limitação de canais e a ausência de redes sociais, o público tinha acesso a um conjunto de informações mais selecionado e editado profissionalmente, o que reduzia a dispersão e a desinformação.
Essa nostalgia reflete, em parte, a velocidade e a fragmentação do jornalismo contemporâneo, onde a urgência da notícia digital muitas vezes se sobrepõe ao aprofundamento, e a credibilidade é constantemente questionada pela disseminação de fake news e conteúdos de opinião disfarçados de informação.
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