Mês passado, durante as comemorações do centenário do jornal O Globo, Jaguar posou para um ensaio fotográfico da revista ELA dedicado a quase centenários. Na ocasião, deu sua última entrevista. “Tive uma vidinha boa. Não me aprofundava em meditações, ia vivendo o momento”, disse, acrescentando que ainda seguia a mesma filosofia. “Não planejo o futuro nem lamento nada do que fiz”, afirmou o autor de “Ipanema, se não me falha a memória”.
Carioca nascido em 29 de fevereiro de 1932, Jaguar começou sua carreira desenhando para revista Manchete em 1952. Adotou seu famoso pseudônimo por sugestão do cartunista Borjalo. À época, Jaguar trabalhava no Banco Brasil, subordinado ao cronista Sérgio Porto, que o convenceu a não abandonar o emprego para se dedicar exclusivamente à carreira no humor.
Nos anos 1960, Jaguar se consagrou como um dos principais cartunistas da revista Senhor e colaborou também para a Revista Civilização Brasileira, a Revista da Semana, a Pif-Paf e os jornais Última Hora e Tribuna da Imprensa. Em 1968, lançou seu primeiro livro, “Átila, você é bárbaro”, um sucesso instantâneo, que, com ironia, combatia o preconceito, a ignorância e a violência. “Comparado com os vândalos de hoje, Átila não passa de um doce bárbaro”, afirmou o autor. O cronista Paulo Mendes Campos descreveu a obra como “um livro de poemas gráficos”.
Ao lado de Tarso de Castro e Sérgio Cabral, fundou o Pasquim em 1969. Irreverente e combativo, o jornal marcou a imprensa alternativa que floresceu à sombra da ditadura militar e congregou alguns dos maiores expoentes do jornalismo e das artes brasileiras, como Millôr Fernandes, Ziraldo, Henfil, Paulo Francis e Sérgio Augusto.
Jaguar batizou o jornal e desenhou um dos símbolos mais populares do Pasquim, o ratinho sacana Sig (de Sigmund Freud), inspirado numa piada que arrancava risadas à época: “se Deus havia criado o sexo, Freud criou a sacanagem”. Neurótico e libidinoso, Zig era apaixonado por Odete Lara e Tânia Scher. Originalmente, o ratinho havia sido criado para o lançamento da cerveja Skol. Jaguar foi incumbido de desenhar uma história para campanha publicitária e assim nasceu a tirinha “Chopnics”, mistura de “chopp” com “beatniks”, estrelada pelo Capitão Ipanema, o BD (cuja inspiração era o ator Hugo Leão de Castro, o Hugo Bidê, que tinha um ratinho branco, apelidado de Ivan Lessa, que o acompanhava aos bares).
Outro personagem que alcançou a fama foi Gastão, o Vomitador, que passava mal e punha tudo para fora diante dos absurdos do noticiário. Em 2015, Jaguar revelou que notícia terrível havia inspirado o enjoo do personagem: numa entrevista ao Pasquim, em 1972, o roteirista Carlos Manga confessou “um crime hediondo”: “ele foi o inventor do júri de televisão”. “Ilustrei sua declaração com o Gastão vomitando. Gastão teve vida breve. Como não sabia fazer outra coisa além de vomitar, enjoei de desenhá-lo e o despedi”, contou o humorista, também criador de Bóris, o Homem-Tronco; Wilson, o Dubitativo; Anta de Tênis; Lulu, o Protozoário (apenas uma tira publicada), Bicho Borka, entre outros personagens.
Jaguar descrevia O Pasquim como “o auge do sucesso”.
— Até a censura era um barato — disse ele em entrevista. — Era feita pelo Coronel Juarez, um bonitão, sósia do Gary Cooper. Recebia a gente na garçonnière dele. Pegava o material e riscava a lápis. A gente argumentava. Havia diálogo. O pessoal torcia para chegarem as garotas. Ele apresentava: “Esses são meus amigos do famoso ‘Pasquim’.” Aí liberava as maiores atrocidades! Ele tinha uma turma de coroas na praia, a gente contratou uma loura espetacular de biquíni. Ela levava o material, e ele censurava na praia! E ela, alisando o velho, dizia: “Ah, meu bem, não faz isso, os meninos vão ficar tão tristes…” Ele ficava orgulhoso e liberava.
Autor de “Rato de redação: Sig e a história do Pasquim” (Matrix), Márcio Pinheiro afirma que Jaguar “teve peso decisivo para manter o jornal de pé do começo ao fim” e que muito da irreverência e da competitividade do semanário se deviam ao cartunista.
— Jaguar se destacava primeiro por seu traço. Ele cria o Pasquim aos 37 anos, já era um nome de primeira linha nas artes gráficas brasileiras. Com o Pasquim, ajudou a mudar a maneira como se fazia charge e jornalismo no Brasil — diz o autor. — O legado de Pasquim já começou a se afirmar nos anos 1960. Ele formou sucessores como Chico e Paulo Caruso e depois a turma de São Paulo, de Angeli e Laerte. A obra dele vai permanecer. Ele está na história da imprensa e do desenho brasileiro. E viveu uma vida à altura de seu talento.
O cartunista e roteirista Arnaldo Branco afirma que, além de ser “um gênio do humor”, “Jaguar era fera em se meter em encrenca”:
— Foi o primeiro a se manifestar contra a ditadura militar quando o jornal onde trabalhava, o Última Hora, foi destruído por golpistas (desenhou um gorila sapateando em uma máquina de escrever). Fundou O Pasquim, para falar mal dos militares e fez quase todo o staff ser preso em 1969, quando publicou uma paródia do quadro Grito do Ipiranga com Dom Pedro bradando “Eu quero mocotó!” — conta Branco. — Vai fazer falta nessa época em que humoristas sem um pingo da sua coragem nem inimigos do mesmo porte reclamam de perseguição.
Em 1970, Jaguar passou três meses encarcerado pela ditadura militar e foi solto no réveillon. Famoso por ser um dos humoristas mais escrachados do país, ele brincava que prisão “foi a fase mais feliz da minha vida”.
— Nunca bebi tanto. Não é piada: foi a fase mais feliz da minha vida. Acordava e pensava: “O que tenho para fazer hoje? Porra nenhuma!” Subornava os guardas para ter cachaça. Bebia do gargalo e jogava num matagal atrás da cela. Consegui ler 60 páginas de “Ulisses”. Depois não retomei. “Ulisses” ou você lê na prisão ou não lê.
Em 2008, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça concedeu ao cartunista uma indenização de mais de R$ 1 milhão e uma pensão mensal de R$ 4 mil em reparação à perseguição política durante a ditadura militar. O cartunista recebeu críticas devido ao montante da indenização e reclamou que “não esperava levar tanta porrada”.
Jaguar foi o único da equipe original a permanecer no semanário até a última edição, em novembro de 1991. No ano anterior, a turma do Pasquim havia sido homenageada pela escola de samba Acadêmicos de Santa Cruz com o enredo “Os heróis da resistência”.
Na TV Globo, Jaguar fez animações para as famosas vinhetas do Plim Plim. Ele lia muita poesia e gostava de jazz. E de futebol. Não tinha nenhum preconceito. Assistia ao ludopédio nacional, mas também ao inglês, ao espanhol e ao italiano. Teve a sorte de morar em Santos nos tempos de Pelé. Também era “viciado” em jornal de papel. Aos 82 anos, o autor de “Confesso que bebi” se tornou abstêmio por causa de um tumor no fígado.
— Agora, só cerveja sem álcool. Quer dizer, tem 0,5% de álcool. Ou seja, de 0,5 em 0,5 a gente pode chegar a um resultado expressivo! Como disse aquele comediante Marcelo Adnet, que também está abstêmio, “é zero, mas pelo menos não é usada” — disse ele em 2014 ao Globo, numa entrevista que jurou ser a última. — Depois de sair no Globo, só falo para o “New York Times”.
À época da entrevista, Jaguar trabalhava no jornal O Dia e comemorou ser reconhecido “por taxistas e mendigos”.
— Uma caixa de supermercado outro dia viu minha assinatura e perguntou: “Jaguar, o cartunista?” Eu disse: “Como é que você sabe?” E ela: “Eu posso ser humilde, mas me interesso por cultura.” Eu achei tão bonitinho!
Disse ainda que se considerava um “bom cronista de situações”, mas que, pasmem, não sabia desenhar.
— Nunca soube. Se tenho que fazer caricatura, copio do Chico, do Angeli, e as pessoas acham que é um estilo. No Brasil, qualquer um que dure dez anos num ofício é considerado grande profissional. Fui um fiasco nas escolas de desenho. Houve um instituto onde eu tinha que desenhar um busto de Voltaire e aí pus uma mosca no nariz dele. Fui expulso — contou o cartunista, que achava as tirinhas da Mafalda “uma merda”. — O Quino fazia legendas que eram poesia nas charges. Mas “Mafalda” é uma merda. Eu disse isso a ele, e a chata morreu. Sei lá se foi por isso…
Jaguar deixa a esposa, Célia, e a filha, Flávia Savary.
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