Por Flávio Chaves*
Recebi, ontem, uma notícia que me atravessou a alma. Uma daquelas notícias que o tempo tenta adiar, mas que a vida, em sua lei implacável, um dia traz: faleceu Hildebrando Marques. Um infarto fulminante, como se o coração grande que ele sempre teve não coubesse mais dentro de si. E foi assim, num instante, que Carpina perdeu um de seus filhos mais queridos, e a nossa história local, um de seus mais luminosos capítulos.
Hildebrando não foi apenas um nome. Foi um acontecimento. Um daqueles personagens que parecem nascer com o destino traçado de deixar marcas por onde passam. Músico, radialista, repórter, blogueiro, apresentador de auditório, homem de microfone, de palco e de calçada. Um polivalente da comunicação e da cultura popular, um verdadeiro arauto das madrugadas e das serenatas que emocionaram gerações inteiras. Quantos corações adolescentes, quantos primeiros amores, quantas juras de eternidade ecoaram ao som de sua voz, embalada pelas canções que atravessavam as ruas silenciosas de Carpina nas noites enluaradas.
Leia maisA saudade que agora nos visita é daquelas que chega com cheiro de jasmin e com a memória dos bailes no Clube Lenhadores. Os jovens casais se preparavam como quem se prepara para uma grande travessia. Cada dança era uma promessa, cada olhar um futuro sonhado. E Hildebrando, com sua arte e sua entrega, era o maestro invisível dessas emoções. Não há como esquecer.
Mas sua grandeza não foi feita apenas de acordes e microfones. Foi feita de humanidade. De gestos de amizade. De presenças generosas. Lembro com clareza – e com o coração tocado – do tempo em que eu apresentava, ao lado de José Alfredo, o programa cultural Palanque Armado, nas décadas de 70 e 80. Era um tempo de sonhos e de resistência cultural. E foi Hildebrando quem se aproximou, quem nos estendeu a mão, quem se colocou ao nosso lado com solidariedade e apoio incondicional. Seu compromisso com a cultura da nossa terra sempre foi maior do que qualquer vaidade pessoal. Ele era, antes de tudo, um servidor da memória coletiva.
Mais recentemente, quando decidi lançar em Carpina meu livro de poesia, O Guardador de Crepúsculo, foi novamente Hildebrando quem acolheu o projeto com o entusiasmo de quem abraça um irmão. Abriu espaços, mobilizou corações, convocou amigos e fez daquele momento um reencontro com minhas raízes. Aquele gesto foi mais do que uma cortesia – foi uma declaração de afeto e reconhecimento.
A morte, como escreveu Guimarães Rosa, “não é o contrário da vida, mas uma parte dela”. E hoje, diante da partida de Hildebrando, percebo com mais nitidez o quanto ele permanece entre nós. Porque há pessoas que, mesmo ausentes fisicamente, seguem existindo em cada canto da cidade, em cada música tocada, em cada história recontada na mesa de um bar ou numa conversa entre amigos.
Khalil Gibran nos lembrou certa vez que “quando estiverdes tristes, olhai de novo em vosso coração, e vereis que estais chorando por aquilo que vos foi alegria”. E é exatamente isso que sinto. A tristeza que me habita hoje é irmã gêmea da gratidão por tudo o que Hildebrando representou para mim e para Carpina.
Foi criança órfã de mãe aos 8 anos, caminhou na vida ao lado do senhor João Marques, seu pai. E mesmo com as dores que a existência lhe impôs, soube fazer da vida um palco de alegrias e encontros. Quem o conheceu sabe: Hildebrando foi um homem digno, um amigo de todas as horas, um construtor de afetos.
Aos que ficam, cabe o dever da memória. Como dizia Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena.” E Hildebrando tinha uma alma grande, generosa, inesquecível.
Hoje, enquanto escrevo estas linhas, me pergunto quantas madrugadas ainda ecoarão com as lembranças das suas serenatas. Quantos jovens, daqui a alguns anos, ouvirão falar de um homem que cantava para a cidade adormecida, que vibrava nos microfones, que narrava a vida com a paixão de um verdadeiro filho da terra.
Que Deus o receba com a mesma música e o mesmo carinho com que ele embalou tanta gente por aqui. A nós, resta o silêncio reverente, a saudade profunda e a missão de contar, quantas vezes forem necessárias, quem foi Hildebrando Marques.
E quem foi? Um homem. Um amigo. Uma história inteira em forma de gente.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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