Por Inácio Feitosa*
Há mudanças silenciosas que raramente viram manchete, mas alteram a espinha dorsal do Estado. Em 2025, duas normas assim redesenharam o futuro da educação inclusiva no Brasil: o Decreto Federal nº 12.686/2025 e a Resolução nº 296/2025 do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco. Juntas, essas normas instauram um novo regime jurídico que simplesmente não admite aquilo que, por décadas, foi regra em milhares de municípios: improviso, contratações frágeis e cuidadores informais que sustentavam, precariamente, uma política que deveria ser técnica, estável e contínua.
O decreto federal estabelece o padrão nacional de inclusão escolar. Determina que estudantes com deficiência, com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) devem receber apoio especializado dentro da escola regular, com parâmetros mínimos de qualidade e com profissionais devidamente preparados. Não se trata apenas de garantir acesso; trata-se de assegurar aprendizagem, permanência, segurança e dignidade. A inclusão deixa de ser apêndice e passa a ser eixo de organização das redes municipais.
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O profissional de apoio escolar – figura central nessa engrenagem – passa a ter perfil técnico definido: formação mínima de 80 horas, domínio de estratégias de mediação e compreensão das necessidades sensoriais e comportamentais de cada estudante. O país, enfim, estabelece um padrão de quem pode e quem não pode exercer uma função tão sensível.
Mas é a Resolução nº 296/2025 do TCE-PE que torna esse padrão possível. Se o decreto descreve o “como deve ser”, o Tribunal de Contas descreve o “como pode ser contratado”. A resolução exige que todo profissional esteja vinculado a cargo criado por lei, determina que concursos observem critérios objetivos e limita o uso de temporários a hipóteses realmente excepcionais. A regra é direta: sem lei municipal criando o cargo de Auxiliar de Desenvolvimento à Inclusão, qualquer contratação é irregular.
E aqui está o ponto que 2026 transformará em divisor de águas. A demanda por inclusão é permanente. Crianças neurodivergentes chegam à escola todos os anos. Não é eventual, não é transitória, não decorre de calamidade. Portanto, o uso de contratos temporários – prática histórica no Nordeste – não encontra mais respaldo jurídico. A resolução proíbe substituição permanente por mão de obra temporária e impõe limite de 30 % de vínculos precários no serviço público, percentual que grande parte das redes ultrapassa quando o assunto é inclusão.
O Manual de Seleções Públicas do TCE reforça que até seleções simplificadas precisam de editais estruturados, critérios objetivos e ampla divulgação. Ficou para trás a era das listas internas, convocações diretas ou renovações automáticas de contratos. A partir de agora, o que antes era tratado como “arranjo administrativo” passa a ser visto como irregularidade.
A mensagem é inequívoca: insistir em cuidadores informais, monitores improvisados ou contratações sem formação mínima deixará de ser tolerado. O secretário que mantiver profissionais sem ensino médio ou sem as 80 horas de formação mínima poderá responder por violação aos princípios da legalidade, da moralidade e da proteção integral da criança. O risco não é teórico. O Ministério Público pode propor ações de improbidade. O TCE pode glosar despesas, determinar devolução de valores, ordenar substituição de profissionais irregulares e rejeitar contas. Famílias poderão acionar judicialmente os municípios por danos decorrentes da ausência de apoio adequado.
E a responsabilidade não recai apenas sobre o secretário. O Controle Interno tem o dever de impedir a continuidade das irregularidades. A Procuradoria Municipal não pode emitir pareceres que validem cargos inexistentes ou vínculos precários. E o prefeito responde solidariamente: quando a irregularidade persiste, a omissão é compartilhada.
É verdade que os municípios continuam à margem de um arranjo federativo desigual. A União define padrões, cobra qualificação, fixa formações, mas repassa recursos insuficientes. Municípios – especialmente nordestinos – arcam com mais de 70 % da educação básica e sustentam a inclusão praticamente sozinhos. Ainda assim, o fato jurídico permanece: a obrigação existe. E, enquanto gestores discutem orçamento, quem sofre são as crianças.
Por isso, a história de Maria – a menina do agreste que se esconde debaixo da mesa quando o mundo pesa demais – permanece como símbolo. Maria não é personagem literário; é diagnóstico. É espelho de milhares de crianças que seguem invisíveis às normas, aos sistemas e às urgências administrativas. Quando o gestor posterga a criação do cargo, adia concursos ou mantém contratações informais, ele não descumpre apenas a lei: prolonga o sofrimento de Maria. Diz a ela, sem palavras, que continuará invisível.
A transição é dura, mas necessária. A era do improviso acabou. Começa a era da responsabilidade – jurídica, administrativa, ética e humana. O momento exige coragem para criar cargos, definir atribuições, estruturar formações, reduzir temporários e cumprir a Resolução nº 296/2025 em sua integralidade.
As crianças brasileiras – especialmente as do Nordeste – não podem mais esperar que a inclusão funcione “como der”. Precisam que funcione como deve ser.
*Advogado, diretor e fundador do Instituto IGEDUC
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