Da Folha de S. Paulo
A ascensão dos Campos-Arraes na política de Pernambuco desencadeou confrontos internos dentro da família, evidenciando diferenças ideológicas e de estratégia entre seus membros. Disputas pelo controle de partidos e uma série de divergências emergiram ao longo dos anos, fragmentando, em certa medida, o poder e a unidade familiar.
A divisão ficou escancarada na dura disputa pela Prefeitura do Recife entre os primos Marília Arraes (Solidariedade) e João Campos (PSB) em 2020.
Leia maisA atuação do clã tem origem a partir do exercício político do advogado e depois governador Miguel Arraes (1916-2005) no final dos anos 1940.
Durante a ditadura militar, Arraes se exilou na Argélia, anos após ser deposto do cargo de governador de Pernambuco, em abril de 1964, com o golpe de Estado. Voltou à vida pública depois da anistia, foi eleito deputado federal três vezes e governador por dois mandatos — também perdeu uma eleição estadual.
Arraes encerrou sua carreira política como deputado federal. Morreu no cargo em 2005, mas segue com sua imagem lembrada e explorada em campanhas até hoje — além de ter sua herança política disputada pelos membros da família.
Neto de Miguel Arraes, Eduardo Campos (PSB) devolveu o protagonismo à família Campos-Arraes ao vencer a eleição de 2006 para o Governo de Pernambuco. Ele passou a comandar o grupo político até a sua morte em um acidente de avião, durante a campanha de 2014, quando concorreu à Presidência da República.
No outro polo, a prima de Eduardo, Marília Arraes, também neta de Miguel, estreou nas urnas em 2008, quando se elegeu vereadora do Recife pelo PSB, aos 24 anos, sendo reeleita duas vezes.
Foi a vaga cativa na Câmara dos Deputados, que a família mantinha desde 1990, o motivo da briga pelo espólio político dos Campos-Arraes. Após a morte de Miguel Arraes, sua filha Ana Arraes se elegeu duas vezes, em 2006 e 2010.
Seu pai, porém, não era entusiasta do lançamento dos filhos na política. Miguel via o neto Eduardo como seu sucessor natural e com vocação para a vida pública, o que acabou acontecendo.
Foi Eduardo que articulou a campanha que levou Ana Arraes ao Tribunal de Contas da União em 2011, por meio de indicação da Câmara.
O vácuo deixado por Ana na Câmara estimulou o desejo de Marília Arraes em conquistar a vaga, mas Eduardo Campos vetou a candidatura da prima. Segundo aliados próximos à época, ele já visava uma candidatura do filho, João, a deputado federal, em 2014 ou 2018. A dúvida era se o primogênito terminaria o curso de engenharia antes ou depois de se candidatar —prevaleceu a primeira opção.
A partir de então, Marília e Eduardo, ambos no PSB, entraram em pé de guerra. Em 2014, Marília fez críticas à condução de Eduardo na disputa pela presidência da Juventude do partido. Na ocasião, ela queria eleger um aliado próximo, enquanto a ala de Eduardo defendia João Campos para o cargo.
Na eleição daquele ano, em que Eduardo concorria ao Planalto, Marília abriu uma divergência interna no PSB e fez campanha pela reeleição de Dilma Rousseff (PT) à Presidência e a Armando Monteiro para o Governo de Pernambuco, contra Paulo Câmara, do PSB.
Quando Eduardo morreu em 13 de agosto, Marília tentou ir ao velório, mas a família Campos mandou sinais de que ela não seria bem-vinda, pois tinha feito críticas duras ao primo.
Em mais um capítulo do afastamento da família, Marília trocou o PSB pelo PT para concorrer à reeleição como vereadora do Recife em 2016. Sua filiação foi assinada pelo então ex-presidente Lula e teve aval do senador petista Humberto Costa (PE).
Em Pernambuco, PSB e PT estavam rompidos desde 2014 devido a disputa presidencial, e assim seguiram em 2016, com os pessebistas apoiando o impeachment de Dilma.
O endosso do PSB ao impeachment foi explorado por Marília na campanha. O então prefeito do Recife, Geraldo Julio (PSB), articulou para reduzir as bases eleitorais dela na periferia. Ainda assim, a neopetista ficou entre as mais votadas da cidade.
Com o apoio da militância petista, a então vereadora lançou pré-candidatura a governadora, aparecendo na primeira posição nas pesquisas de intenção de voto — era uma ameaça ao PSB.
Ter Marília como governadora seria uma derrota para a ala Campos da família, à exceção do advogado Antônio Campos (ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco no governo Bolsonaro), irmão de Eduardo, que sempre se coloca contra os Campos — a ponto de ter apoiado o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Com Marília no páreo e o governador Paulo Câmara mal avaliado, o PSB articulou a retirada da pré-candidatura dela junto à direção nacional do PT em troca do apoio do PSB pernambucano à candidatura de Fernando Haddad (PT) para presidente em 2018.
Os principais articuladores da retirada da candidatura de Marília foram Luciana Santos e o deputado Renildo Calheiros, ambos do PCdoB, o então prefeito do Recife Geraldo Julio (PSB) e o senador Humberto Costa, que não gostava do estilo de Marília de fazer política e temia que, se ela chegasse ao governo estadual, virasse protagonista no PT local.
A reviravolta que prejudicou Marília teve o aval de Lula, que estava preso. Ela ficou chateada com o petista, mas não fez críticas públicas. Optou por responsabilizar o PSB, se candidatou a deputada federal e foi eleita. Já o PSB venceu novamente no estado.
No ano seguinte, dias após sair da prisão, Lula foi ao Recife e compareceu a um jantar na casa de Marília. Naquela ocasião, eles conversaram a sós, e o petista perguntou se ela queria ser candidata a prefeita, ao passo que Marília sinalizou positivamente. Lula garantiu a postulação na eleição de 2020.
João Campos e Marília Arraes foram ao segundo turno, deixando dois candidatos da direita para trás.
Considerado tarefeiro dos Campos, o então prefeito Geraldo Julio ordenou uma ofensiva contra Marília nos debates e na propaganda eleitoral de rádio e televisão. Pesquisas internas indicavam que o PT era rejeitado por evangélicos e ricos.
Uma das peças televisivas mostrou um avião com Gleisi Hoffmann, Aloizio Mercadante e José Dirceu. “Cuidado, eles querem mandar no Recife.” Em paralelo, relembraram um trabalho de Marília na faculdade sobre aborto, além de explorar escândalos de corrupção do PT. Por fim, João Campos venceu o pleito.
No ano passado, depois da derrota, Marília acabou deixando o PT, insatisfeita por não comandar o partido no estado, e se filiou ao Solidariedade — ela era favorita na eleição para o Governo de Pernambuco.
A saída deixou Lula contrariado, segundo fontes petistas. O atual presidente já classificou Marília como “teimosa” em fala a aliados. Ele tentou reverter a desfiliação de Marília e disse que ela poderia ser candidata a senadora na chapa com o PSB para o governo estadual, mas ela não cedeu.
No Solidariedade, Marília ainda lançou a irmã, a advogada Maria Arraes, para deputada federal. Com uma campanha que trazia adesivos com a imagem de Miguel Arraes, bastante lembrado no interior, Maria se elegeu, mas hoje está afastada — não rompida — da irmã. Informações de bastidores apontam que ela não teria aceitado a ingerência de Marília no seu mandato.
As duas são filhas de Marcos Arraes, que já foi diretor da Hemobrás durante governos petistas. Diferentemente da irmã, Maria tem boa relação com os Campos. É madrinha de casamento de Eduarda Campos, irmã de João Campos.
Na eleição do ano passado, então, Marília foi para o segundo turno com mais de 23,97% dos votos válidos, aquém do esperado, e enfrentou Raquel Lyra (PSDB).
No segundo turno, ela recebeu apoio brando do PSB, que disse seguir a orientação de Lula em Pernambuco. O partido sequer citou o nome de Marília Arraes na nota de apoio.
Em 14 de outubro, Lula foi a Pernambuco em um ato de campanha presidencial. O dia era chave para que Marília tentasse tirar a desvantagem em relação a Raquel. O prefeito João Campos também foi chamado pelo petista, que ergueu os braços dos primos adversários.
Dias antes, Marília e João se reuniram no apartamento do então deputado André de Paula (PSD-PE), atual ministro da Pesca de Lula, para apaziguar os ânimos e articular apoios de vereadores e deputados do PSB para a neta de Miguel Arraes.
Marília, no entanto, acabou derrotada no segundo turno por Raquel Lyra, que explorou a união ocasional com João Campos: “Olha, não sou teu primo. Aqui não é uma briga na cozinha da tua casa, em que vocês brigam de dia, e se arrumam no almoço ou no jantar, na pizza de vocês”, disse a tucana em um debate.
A relação de Marília com João Campos atualmente é pragmática. O Solidariedade deve apoiar a reeleição dele no Recife no próximo ano, mas Marília não tem proximidade com o prefeito. Em 2026, Marília quer ao menos disputar o Senado ou tentar o governo novamente.
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