Do jornal O Globo
O Brasil foi o segundo país que mais recebeu investimentos diretos da China no primeiro semestre deste ano, atrás apenas da Indonésia, em meio a um avanço dos aportes chineses nos mercados emergentes, segundo o China Global Investment Tracker, plataforma de monitoramento mantido pelo think tank americano American Enterprise Institute (AEI).
O Brasil já era o quarto maior destino no acumulado desde 2005, quando os aportes do gigante asiático ainda privilegiavam os países desenvolvidos. Rico em matérias-primas, carente em infraestrutura e dono de um grande mercado consumidor, o país tenderá a seguir com destaque no radar do investimento chinês mesmo com o avanço em cima dos emergentes, que já vem de alguns anos.
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De janeiro a junho, as empresas chinesas aplicaram US$ 22 bilhões mundo afora. No topo, US$ 2,6 bilhões foram para a Indonésia e US$ 2,2 bilhões vieram para o Brasil. O valor representa aumento de 5% ante a primeira metade de 2024.
Agro e mineração
Em um dos projetos mais recentes, a Cofco, gigante do agronegócio que no Brasil atua na fabricação de açúcar e etanol e na comercialização de grãos, está terminando de investir num terminal de granéis sólidos no Porto de Santos, concessão que ganhou em 2022.

A chinesa investiu R$ 1,2 bilhão na aquisição de 979 vagões e 23 locomotivas para a infraestrutura ferroviária de acesso ao terminal, anunciou em janeiro a Rumo, operadora ferroviária que firmou parceria com a Cofco. Segundo uma nota da Rumo, o terminal portuário recebeu mais R$ 1 bilhão em aportes.
Antes de as incipientes negociações com a Embaixada dos EUA no Brasil colocarem na mesa a produção de minerais estratégicos — lítio, cobre, níquel, nióbio, terras-raras, entre outros, mais demandados pela alta tecnologia e pela transição para uma economia de baixo carbono —, como revelou o jornal O Globo, empresas chinesas já vinham ampliando investimentos na indústria de mineração nacional.
Na virada do ano passado para este, foram pelo menos quatro transações: a MMG, subsidiária da estatal China Minmetals, anunciou investimento de até US$ 500 milhões (R$ 2,7 bilhões) para ficar com todas as minas de níquel da mineradora Anglo American no Brasil; a China Nonferrous comprou a Mineração Taboca, produtora de estanho refinado, com mina no Amazonas e usina em São Paulo, por US$ 340 milhões (R$ 1,8 bilhão, segundo o China Global Investment Tracker; e a Huaxin Cement pagou US$ 186 milhões (em torno de R$ 1 bilhão) pela Embu, que fornece pedras para construção civil, com pedreiras na Região Metropolitana de São Paulo.
Em abril foi concluída a compra da Mineração Vale Verde, que produz cobre em Alagoas, pela mineradora Baiyin Nonferrous, um negócio de US$ 420 milhões (R$ 2,4 bilhões). Após a aquisição, a Vale Verde passa por “um momento de revisão, priorização e detalhamento de estudos, para que posteriormente possam ser implementados” novos investimentos, mas sem novos aportes no radar, informou a empresa por escrito.
Apesar da posição de destaque do Brasil entre os destinos do investimento chinês no exterior, a média anual está inferior a de anos anteriores, seguindo uma tendência de diversificação já captada em outros mapeamentos, como o feito anualmente pelo Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).
Essa diversificação — saindo de projetos bilionários na infraestrutura, principalmente elétrica, e na indústria extrativa para chegar à indústria e aos serviços, com foco em alta tecnologia — vem com projetos menores e aparece na variedade dos setores alvos dos investimentos, que passaram a ir além de projetos de infraestrutura e matérias-primas.
Nos serviços, chama a atenção a ofensiva no mercado de entregas: a 99, controlada pela chinesa Didi, está se expandindo do transporte de passageiros para o delivery e a Keeta, marca da também chinesa Meituan — que em maio anunciou plano de investimentos de R$ 5,6 bilhões —, está chegando ao mercado.
Até na novela
Na indústria automotiva, a GWM inaugurou este mês sua fábrica em Iracemápolis (SP) — parte de um plano de investimentos de R$ 10 bilhões até 2032. A GAC, sexta maior da China, começou a vender seus elétricos no país em maio, enquanto isso, a BYD, maior produtora global de elétricos, com fábrica na Bahia, segue investindo na conquista do mercado brasileiro — esta semana fez inserções publicitárias nos intervalos da novela Vale Tudo, no horário nobre da TV Globo, em que o veículo aparecia como carro da família Roitman.
“Minério de ferro, soja, petróleo: o Brasil é abençoado com o que a China precisa. Em troca, a China ajudará a construir infraestrutura de energia e outras”, Derek Scissors, pesquisador do AEI e autor do China Global Investment Tracker
Já a Geely inaugurou sua primeira concessionária este mês e lançou campanha na TV com o casal de apresentadores Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert. Em maio, a montadora anunciou a aquisição de 26% da subsidiária brasileira da francesa Renault, replicando parceria semelhante já feita na Coreia do Sul, para compartilhar a rede de vendas e a fábrica no Paraná.
A plataforma do AEI registrou um aporte de US$ 720 milhões (R$ 3,9 bilhões) no Brasil em junho — procurada, a Geely não comentou.
— Temos a questão das matérias-primas, que ainda é importante, mas o foco no mercado consumidor é muito evidente quando se fala do carro elétrico e, agora, nos investimentos em aplicativos de entrega — afirmou Tulio Cariello, diretor de Conteúdo e Pesquisa do CEBC e autor do relatório anual da entidade, cuja edição de 2025 deverá ser divulgada no início de setembro.
A diversificação ajuda a explicar por que o Brasil seguirá no radar mesmo com mudança no perfil de seus investimentos no exterior.
— Os investidores chineses permanecem intensamente interessados nas commodities do Brasil. Minério de ferro, soja, petróleo. O Brasil é abençoado com o que a China precisa. Em troca, a China ajudará a construir infraestrutura de energia e outras — disse ao jornal O Globo, por escrito, o economista Derek Scissors, pesquisador do AEI e autor do China Global Investment Tracker.
Os dados publicados pelo AEI mostram a mudança de perfil no investimento chinês. Embora Reino Unido e França ainda tenham figurado entre os principais destinos dos investimentos da China no exterior em 2024 e 2025, Hungria, Malásia, Cazaquistão e República Democrática do Congo também figuraram nas listas, ao lado de Indonésia e Brasil.
Restrições dos ricos
Segundo Scissors, esse avanço rumo aos emergentes tem a ver com restrições dos próprios países desenvolvidos às empresas chinesas, especialmente a partir do primeiro governo Trump.
E esse avanço se dá também no comércio. Ano passado, as exportações da China para o chamado Sul Global somaram US$ 1,584 trilhão, mais de 50% acima do US$ 1,046 trilhão vendido para os EUA e a Europa Ocidental somados, segundo relatório da agência de classificação de risco Standard & Poor’s (S&P).
“As elevadas incertezas sobre as tarifas dos EUA e a desaceleração da economia doméstica da China continuarão a motivar as empresas chinesas a avançar para o Sul Global. O resultado poderá ser uma nova ordem do comércio global, na qual as trocas Sul-Sul se tornem o novo centro de gravidade, e as multinacionais chinesas emerjam como novas protagonistas”, diz o relatório, publicado na terça-feira.
Ao se manter em destaque mesmo na nova configuração, o Brasil poderá se beneficiar, mas Renato Baumann, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que foi secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex), alerta para os riscos do aprofundamento do padrão atual do comércio bilateral Brasil-China, em que exportamos matérias-primas e importamos manufaturados.
— Ficamos dependendo de quem fornece, da assistência técnica. Sobretudo, o que preocupa mais é a questão dos padrões técnicos — afirmou Baumann. — Um padrão produtivo chinês bem diferente do que é aceitável na Europa ou nos EUA pode vir a complicar a exportação de algum produto para lá.
Segundo o pesquisador, não se trata de vetar a importação de componentes ou maquinário mais baratos e de alta tecnologia, mas ter uma atenção a isso. E o mesmo vale para os investimentos, especialmente quando se destinam para infraestrutura e insumos estratégicos, como o sistema elétrico ou os minerais críticos.
Baumann defende, no mínimo, uma política de monitoramento dos investimentos, já que as carências da infraestrutura, a falta de espaço no Orçamento público e a escassez de poupança interna impedem que o Brasil recuse totalmente os aportes.
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