A natureza exuberante do litoral caribenho contrasta com a miséria vivida pela maioria da população, assim como o momento atual é totalmente antagônico ao vivido no início do século 19, quando em 1804, pelas mãos de Loverture, Dessalines e outros heróis nacionais, o país conquistava sua independência, sendo o primeiro país latino-americano levado a essa condição, e criando uma expectativa de crescimento e progresso ao seu povo.
Mas a espoliação de outros povos, os recorrentes conflitos internos e atentados sempre suplantaram qualquer iniciativa de desenvolvimento. As frequentes catástrofes naturais, como terremotos e furacões, são outros fatores de dificuldade para essa ilha de 27.750 km², tamanho quase igual ao do Estado de Alagoas, e população estimada em 11,7 milhões de habitantes (2022), quase quatro vezes maior que a população do estado nordestino.
O país mais pobre das Américas, segundo estudo publicado anualmente desde 2010, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pela Oxford Poverty and Human Development Initiative (OPHI), aponta que mais de 40% dos haitianos vivem na pobreza extrema.
Mas o que se pretende com este artigo não é falar de tragédias, mas reforçar a importância da mobilização mundial na ajuda imediata às pessoas atingidas, com o firme propósito de mitigar o sofrimento humano.
Ação humanitária é, em síntese, uma ação coordenada de gestão organizada, utilizando basicamente o amor ao próximo como princípio básico e combustível, independentemente de onde ocorre, mas sim de quem pode e deve ajudar.
Naquele momento, e ainda hoje, é o Haiti. Amanhã poderá ser Costa Oeste americana, Nordeste brasileiro, Pequim, Moscou, Zâmbia, Quebec, enfim, qualquer lugar no planeta.
Relembro com imenso orgulho que no dia seguinte, 13 de janeiro de 2010, o governo brasileiro já se unia a outras nações irmãs, em missão integrada pelo Ministério da Saúde do Brasil, sob o comando do Ministério da Defesa, formando o primeiro grupo de nações a prestar ajuda humanitária.
Fazer parte do time brasileiro ao longo desses 14 anos de ajuda humanitária no Haiti é o que me faz sentir-me um ser humano muito melhor que antes. Ter a oportunidade de entregar – com êxito – 98 % do maior projeto humanitário do Brasil fora de nossas fronteiras, auditado por órgão de fiscalização externa contratado pelo PNUD, além de visita de inspeção “in loco”, realizada pela CGU no ano de 2017, muito me honra.
Nesse período, foram centenas de entregas feitas pelo projeto, como três hospitais, um centro de gestão de ambulâncias, três depósitos de vacinas, centenas de capacitações técnicas, formação de mais de 1,5 mil agentes comunitários, com base no currículo do Sistema Único de Saúde do Brasil, 40 ambulâncias totalmente equipadas, vacinas, medicamentos, insumos, dezenas de outros veículos, etc., com investimento total de R$ 255 milhões, divididos em duas etapas do projeto, uma em 2010 e a outra em 2018, que certamente impediram um sofrimento maior de milhões de haitianos.
Tudo isso sempre dentro do processo de decisão do Comitê Gestor Tripartite (Brasil/Cuba/Haiti) – modelo de gestão adotado por sugestão do Brasil, com reuniões trimestrais no Haiti, capitaneado pelo Ministério da Saúde, sob o acompanhamento técnico e administrativo da Agência Brasileira de Cooperação – ABC, em convênio com a Fiocruz e as Universidades de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD.
Vale ressaltar ainda que o projeto, moldado para ser uma política pública de Estado, não apenas transferiu recursos ou entregou bens e equipamentos, mas vem treinando e capacitando pessoas, dando possibilidade para que os haitianos operem as unidades de saúde, quando possível ampliem as atividades médicas e hospitalares, e no futuro se desenvolvam econômica e socialmente, seguindo a boa máxima oriental de não apenas dar o peixe.
As ações do Brasil no Haiti, além do caráter humanitário, encontram respaldo nos Princípios Fundamentais da Constituição Federal, em seu parágrafo 4º, que trata do compromisso nacional com a melhoria das condições de vida em países em desenvolvimento.
Agradeço a todas as pessoas envolvidas, que com seu trabalho e dedicação contribuíram para a construção desse importante legado, com uma saudação especial à saudosa brasileira doutora Zilda Arns, que deixou sua vida na catedral de Porto Príncipe, durante o fatídico terremoto, quando lá trabalhava.
Destaco o espírito humanitário do presidente Luís Inácio Lula da Silva, pois sem ele todas essa entregas não seriam possíveis. Um homem de notável conduta humanitária dentro e fora do nosso país, uma pessoa que já passou da hora de receber um prêmio e o reconhecimento internacional por suas ações em prol da humanidade.
Espera-se que algum dia o Haiti tenha condições de implementar políticas públicas em larga escala para trazer motivo a uma população que, apesar da dor e da fome, não consegue deixar de ser hospitaleira. Por isso, uma análise minimamente racional aponta logicamente para a necessidade premente de continuidade das ações de Cooperação Técnica em Saúde no Haiti.
Toda a população haitiana é descendente da África. A maior parte da população brasileira e descendente da África. Somos irmãos de sangue.
Por lá, há uma expressão usada por todo cidadão haitiano, do mais humilde ao mais abastado: “bon bagay”, que em Creole – idioma natural do Haiti – quer dizer: sangue bom. Quando alguém faz algo bacana, eles dizem: “bon bagay”. Por extensão, qualquer coisa boa é “bon bagay”. Eu tenho certeza de que na ilha conhecida também como “boca do jacaré”, por conta de sua configuração geográfica, o Brasil, os brasileiros e as brasileiras são “bon bagay”.
Por Paulo Marcos Rodopiano, servidor público federal e representante do Brasil no Projeto de Cooperação em Saúde no Haiti
Por Everaldo Torres, advogado e consultor técnico para assuntos relacionados ao Haiti
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