Por Marcelo Tognozzi
Colunista do Poder360
Quando eu era moleque, o futebol-arte era o que fazia a diferença. O time da Copa de 1970, por exemplo, era uma orquestra que tocava praticamente sozinha, como reconheceu João Saldanha, que treinou e consolidou o elenco depois dirigido por Zagalo. As Copas de 1974, 1978, 1982 e 1986 seguiram o padrão daquele estilo de jogo lindo de se ver.
Os campeonatos de 1994 e 2002 foram o canto do cisne de um tempo em que os Ronaldinhos encantaram os estádios e Roberto Carlos era o terror dos goleiros com seus gols de falta. Que saudades dos gols de falta de Zico, Branco, Rivelino e Sócrates.
Leia maisAté que o futebol brasileiro começou a descer a ladeira. Foram tempos difíceis. Aliás, ainda vivemos um pouco estes tempos. Hoje, temos de engolir um técnico italiano, em fim de carreira, treinando uma Seleção Brasileira que perdeu o encanto. Faz tempo que o Brasil precisa de uma novidade. A última delas apareceu há 67 anos, quando o adolescente Edson Arantes do Nascimento botou os gringos para dançar na Copa da Suécia.
Nesta semana, quando o Flamengo se sagrou campeão da Libertadores e do Brasileirão, em um intervalo de só quatro dias, tive a nítida sensação de que nossa autoestima estava sendo resgatada, não pelos craques rubro-negros, mas pela figura discreta e extremamente competente do treinador Filipe Luis Kasmirski, 40 anos, catarinense de Jaraguá do Sul, signo de Leão.
Ele é a grande novidade do futebol brasileiro. A responsabilidade é grande. Chegou pelo mérito, é discreto, não pinta cabelo nem se cobre de adereços e rabiscos. Se impõe pelo que sabe. E ele sabe muito.
Lembro-me da bronca que ele deu no Gabigol no campeonato do ano passado, mostrando quem é que manda. No time de Filipe, não tem espaço para amadorismo. Não basta ser craque, tem de participar.
O técnico do Flamengo faz parte de uma geração de brasileiros que acredita no mérito, no trabalho e no resultado. Sua ascensão não é fruto de marketing, euforia de torcida ou badalação digital: é resultado de método, estudo e uma vida inteira dedicada a compreender o futebol como estrutura, linguagem e ciência.
Para os que teimam em dizer que ele é tático, eu digo que ele é estratégico. A maioria não sabe que Filipe conhece bem a diferença entre uma coisa e outra: estratégia é o caminho e tática é o passo. Por isso, erra quem pensa em Filipe Luis como um tático. Ele é essencialmente estratégico e mostrou isso nos cinco títulos que conquistou comandando o Flamengo.
Em Jaraguá do Sul, ainda menino, já mostrava esse talento observando o futebol com distância analítica, quase como se estivesse de fora do campo. Baita nerd. Desenhava setas, mapas e posicionamentos. Seja por formação familiar ou vocação, ele sempre foi menos drible e mais conhecimento.
Quando chegou ao Ajax, ainda adolescente, encontrou um ambiente que valorizava exatamente isso: a razão como método. Aprendeu estratégia na prática. Depois, na Espanha, amadureceu no Deportivo La Coruña e viveu seu auge no Atlético de Madrid, onde Diego Simeone o transformou numa espécie de engenheiro defensivo, responsável não só por cumprir sua função, mas por compreender a engrenagem inteira.
Com José Mourinho no Chelsea, absorveu o que faltava: a arte de lidar com emoções, crises e egos. Com a Seleção Brasileira, confirmou sua vocação para interpretar o jogo com amplitude tática e frieza emocional.
Quando retornou ao Flamengo, em 2019, já não era apenas um jogador de elite, mas uma mente preparada para exercer o talento de general de campo. Ao voltar para o futebol brasileiro, se deu conta da crise e da nossa perda de cérebros. Quem viveu a era Cláudio Coutinho sabe do que estou falando.
Os estrangeiros chegaram com tudo, Sampaoli, Abel Ferreira, Jorge Jesus e por aí vai. Jorge Jesus desmontou paradigmas em meses. Abel Ferreira, outro grande estrategista, impôs seu talento. Filipe, em vez de rejeitar essa invasão estrangeira, a estudou. Participava de reuniões táticas, corrigia posicionamentos e explicava princípios aos mais jovens. Enquanto isso, os brasileiros da velha guarda seguiam na base do improviso, como Tite, Dorival Junior, Luxemburgo, Cuca e por aí vai.
Filipe Luis transformou a base do Flamengo numa usina de craques quando sentou na praça no sub-17. Fez dali seu laboratório, colocando em prática as anotações dos seus intermináveis cadernos. Levou para aquela meninada um repertório técnico que grande parte do futebol brasileiro simplesmente ignorava. Em pouco tempo, começamos a perceber que algo diferente estava acontecendo: o Brasil tinha, enfim, um treinador capaz de competir intelectualmente com europeus.
Ele fez cursos, ralou, conquistou certificações pela CBF e pela Uefa e não se contentou. Seguiu estudando, analisando, deduzindo. Soube misturar a ginga do futebol brasileiro com o lado racional e metódico dos europeus. E fez tudo isso com suavidade, disciplina, intuição e criatividade. Zero mediocridade. Coisas que até pouco tempo pareciam perdidas. Vamos lembrar o Brasil jogando bola há cinco, 10 anos atrás.
É um prazer ver o time de Filipe Luis jogar. Diferentemente da rigidez estrangeira, propõe um sistema que permite a liberdade dentro da ordem. Ele não tenta copiar Guardiola, Simeone, Bielsa ou Mourinho. Ele entende a lógica que sustenta todos esses modelos e traduz para a realidade do jogador brasileiro.
Temos um novo padrão na praça. Assim como Zagallo, Telê Santana, Cláudio Coutinho, Carlos Alberto Parreira e Felipão, ele está surgindo com toda a originalidade de quem inaugura uma era. Sua trajetória une estudo, humildade e profundidade: três virtudes que andavam esquecidas. O maestro Filipe foi abençoado pelo destino quando voltou da Europa: veio, viu e venceu.
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